Olimpíada do Rio, um Quarup contemporâneo

Ronaldo Mota (*)

Antônio Callado, autor nascido no Estado do Rio de Janeiro em 1917, tem como uma de suas principais obras Quarup, retratando o período em torno da implantação do Regime Militar em 1964. O livro, publicado em 1967, versa também sobre eventos ocorridos na década anterior nas reservas indígenas da região do Xingu, no centro-oeste do Brasil. O enredo gira em torno de conflitos pessoais e políticos vivenciados pelo protagonista, padre Nando.

Ainda que Quarup e Olimpíadas sejam eventos muito distintos, há elementos de similaridade de contextos que permitem enxergar uma possível premonição de Callado sobre fatos que viriam a ocorrer somente meio século depois. Nesta versão contemporânea, os fatos guardam  semelhanças em termos de espaços de ocorrência e circunstâncias políticas vivenciadas simultaneamente com grandes eventos incluindo atividades desportivas.

No livro, a difícil realidade indígena sensibiliza o visitante padre Nando em meio a acontecimentos como o fim do governo Getúlio, o qual havia prometido a consolidação do Parque Nacional do Xingu para mudar a realidade de conflitos de terra na região. Simultaneamente com o suicídio do presidente Getúlio em 1954, os índios preparam uma grande festa no Xingu envolvendo várias tribos, o ritual Quarup, uma homenagem aos mortos celebrada com cerimônias ritualísticas com atividades de caça e pesca.

A obra retrata dez anos após a morte de Getúlio, já em pleno Regime Militar, um contexto de fortalecimento de grupos conservadores. O personagem Nando pretende celebrar a morte de companheiros de luta política reproduzindo um novo Quarup, desta vez reunindo antigos aliados e membros de uma comunidade de pescadores e de diversas outras “tribos” em torno de um grande jantar. A festa de Nando é invadida pela polícia e por grupos reacionários, entre eles participantes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, e ele é brutalmente espancado. Nando sobrevive socorrido pelos amigos, incluindo uma prostituta, e é protegido por representantes da Igreja.

Passados mais de meio século, o Brasil ainda enfrenta seus conflitos sociais e políticos, incluindo o fortalecimento dos setores conservadores e um processo de impeachment em curso. Tudo isso ocorrendo simultaneamente a um grande evento esportivo, no caso a Olimpíada. O Rio de Janeiro, presente tanto nos momentos descritos por Callado como no presente, reflete e sintetiza esse conjunto de contrastes de um país que mescla grandes perspectivas, belezas incomparáveis e demonstrações inequívocas de criatividade com seus opostos, expressos por frustrações generalizadas e evidências de realidade social perversa e injusta.

Um exemplo interessante da complexidade do país é o papel dos militares, contrastando os acontecimentos de meio século atrás com a positiva participação dos mesmos nos tempos atuais. Hoje não só colaboram na garantia complementar da segurança do evento, mas têm fundamental papel no suporte aos atletas brasileiros ganhadores de medalhas.

Tal qual Callado, que descreveu a singeleza do evento Quarup com a não solução dos conflitos indígenas, é razoável supor que o enorme sucesso da Olimpíada também não seja em si a solução definitiva dos complexos problemas do Rio e do país. No entanto, tais semelhanças traduzem em comum os contrastes e potencialidades que caracterizam o Brasil e atestam um movimento transformador. Entender essa dinâmica permite enxergar aquilo que a foto estática do país, por vezes, oculta: os bons motivos que temos para acreditar numa nação orgulhosamente mestiça e plural que constrói sua própria história e busca permanentemente enfrentar seus imensos desafios.

 

 

(*) Ronaldo Mota é reitor da Universidade Estácio de Sá