A Justiça Além dos Autos, uma obra lançada essa semana pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), conta trechos de histórias da Justiça Itinerante de Roraima, sob a ótica da desembargadora Tânia Vasconcelos Dias, que durante muitos anos foi a juíza responsável por essa ação em Roraima.
O livro foi organizado pela ministra Nancy Andrighi, corregedora Nacional de Justiça e reúne 170 histórias sobre disputas judiciais emocionantes, casos com desfechos surpreendentes, fatos curiosos e, até, histórias de humor, selecionadas pelos coordenadores do projeto, desembargadores Fátima Bezerra Cavalcanti (TJPB) e Pedro Feu Rosa (TJES) e o juiz Álvaro Kalix Ferro (TJRO).
Tânia Vasconcelos foi eleita em 2010 a primeira desembargadora mulher do Estado, é roraimense, nascida em Boa Vista e fez o ensino fundamental e médio em escolas públicas roraimenses, como Princesa Isabel e Gonçalves Dias. Fez faculdade no Amazonas, por que à época não havia instituição de ensino superior no estado, e no estado vizinho foi promotora pública por três anos. Voltou a Roraima quando aprovada em concurso público da magistratura no final de 1991.
A obra será distribuída aos tribunais em edição limitada, mas pode ser acessada no Portal da Corregedoria do CNJ. De acordo com a ministra Nancy, a obra “A Justiça além dos autos” é uma homenagem à magistratura brasileira por meio de crônicas e relatos. “Nessa passagem pela Corregedoria, ao lado do trabalho árduo em prol da celeridade e da eficácia processual, deixo esse lado interessante da vida judicante, desconhecido da sociedade no qual revela o que é ser juiz”, disse a corregedora.
Na opinião da ministra, ser juiz não é só se debruçar sobre processos e mergulhar no mundo virtual dos autos, mas viver acontecimentos sociais como cidadão do povo, com redobrada prudência, parcimônia e crença de que a Justiça começa com um olhar de compreensão. “Antes do juiz ser o condutor do processo, ele é um escafandrista do direito, uma figura destacada, principalmente em comarcas distantes dos grandes centros urbanos, e essa proeminência social o torna alvo de episódios insólitos e pitorescos, átimos de flagrante embaraço que os anos e a memória transformam em casos espirituosos”, afirmou.
Na apresentação, Nancy diz que “um refolgo da labuta diária pode (e deve) ser um serviço da memória, sobretudo, dos casos dramáticos e pitorescos experienciados. Didaticamente, esses acasos nos mostram que a espontaneidade da vida é sempre maior que as nossas expectativas. O prazer de relembrar, com a sensação do dever cumprido e bom humor, é como cantar, e, como nos ensinou o maestro Villa-Lobos, 1um povo que sabe cantar está a um passo da felicidade’.
A Realidade da Vida
Desembargadora Tânia Vasconcelos Dias
Tribunal de Justiça do Estado de Roraima
O desafio de tirar o Judiciário do conforto de um gabinete e levá-lo aos rincões mais distantes das sedes de comarcas pode ser, como de fato o é, na maioria das vezes, cansativo e dispendioso. No entanto, o outro lado disso é a satisfação do dever cumprido, a oportunidade de conviver com pessoas muito especiais, que têm histórias e estórias muito interessantes, fatos que nos fazem enxergar além do nosso próprio umbigo e ter orgulho de efetivamente ver a Justiça acontecer. Nas andanças com a equipe da Justiça Itinerante, pelo interior de Roraima, atendendo em locais improvisados, dormindo em malocas e matando ‘carapanãs’ (como são chamados os mosquitos por aqui), vi e ouvi muitas coisas surpreendentes, por vezes, engraçadas. De certa feita, eu estava sentada no pátio de uma escola, após o almoço, quando chegou um senhor de idade avançada, querendo falar com a Juíza sobre aposentadoria. Então, eu comecei a explicar sobre os documentos necessários e como ele deveria proceder. Passei uns 20 minutos, nesse processo. Ele me olhou de cima a baixo, com um jeito desconfiado e me disse: – Eu agradeço muito a sua atenção, mas eu quero falar é com a Juíza. – Mas já tem quase meia hora que o senhor está falando com ela – respondi. A senhora que é a Juíza? Não acredito! – certamente a incredulidade devia-se ao meu modo de vestir: jeans, camiseta e tênis.
- • • Certo dia, ao realizar uma audiência de alimentos, mandei que o Oficial de Justiça conduzisse o genitor, que havia se recusado a atender ao chamado da Justiça. Para minha surpresa, ao chegar à sala, o dito senhor me tratou com muita intimidade: – Tânia, se eu soubesse que era você que queria falar comigo, eu tinha vindo… Eu disse para mãe ficar tranquila, pois era a Tânia que tinha mandado me buscar… Não tá lembrada de mim? Sou eu, o nêgo Tonho. Esforcei-me para conter o riso e seguir meu trabalho. O conduzido era um conhecido da infância e fez questão de mostrar uma intimidade que nunca teve, mas não o constrangi. Apenas o convenci a arcar com suas responsabilidades de pai e determinei que pagasse a pensão requerida, sob pena de ter de prender ‘meu amigo’. • • • Noutra oportunidade, estávamos atendendo em uma comunidade indígena, no extremo norte do Estado, chamada Uiramutã, quando chegou uma jovem senhora, com parte do rosto encoberto pelo cabelo, dizendo que queria fazer registro e Carteira de Identidade. Mesmo na hora de fazer a fotografia para os documentos, ela continuava com o cabelo sobre o rosto. Então, eu orientei o fotógrafo a afastar o cabelo. Para nossa triste surpresa, constatamos que aquela mulher não tinha um dos olhos e se envergonhava disso, por ser discriminada dentro de sua comunidade (é assim com os indígenas: os portadores de alguma deficiência são discriminados). Além de lhe garantir a documentação, tivemos uma nova missão: conseguir óculos escuros para dirimir o sofrimento daquela senhora, pois, às vezes, não basta fazer Justiça, devemos, antes de tudo, ser solidários.
Acesse o livro A Justiça Além dos Autos no link: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/08/589e35267a63d9c1d87ef79e56ca5fd2.pdf
Texto: Élissan Paula Rodrigues com informações da Ascom CNJ