O Brasil mostra-se como um país intermitente em diversas matérias relevantes à sociedade, que, dentre diversos fatores, emerge-se no discurso financeiro a preponderância nas interações sistêmicas, com performances analítico-econômicas do Direito.
Como consequência desta perspectiva, nasceram de forma emergente as reformas constitucionais, embaladas pelo discurso de retomada do desenvolvimento econômico e controle dos gastos públicos.
Firmada neste pilar, desenrolou-se a reforma da previdência, que, ainda incompleta – incerteza acerca da PEC paralela -, trouxe diplomas normativos fragmentados e, apesar de diversos debates que poderíamos aqui travar, iremos, na presente ocasião, nos delimitar sobre o enredo das alíquotas das contribuições previdenciárias dos militares estaduais, sob a perspectiva do pacto federativo.
O pressuposto nevrálgico ao desembaraçar do assunto, finca-se, inicialmente, na alteração da redação do inciso XXI, do art. 22 da Carta Magna de 1988 promovida pela EC nº 103/2019, que incluiu como competência privativa da União dispor sobre as normas gerais pertinentes à inatividade e às pensões dos policiais militares e bombeiros militares dos Estados.
Em suma, o que antes era disciplinado amplamente pelos respectivos Chefes do Poder Executivo em âmbito estadual, agora passa a obedecer às normas gerais editadas pela União.
No que pese a EC 103/2019 outorgar à União a competência para ditar normas gerais sobre a inatividade e as pensões dos militares estaduais, esta não atribuiu à União a competência para dispor sobre as suas remunerações, até porque o custeio dos vencimentos, remunerações ou subsídios dos militares estaduais é realizado pelos respectivos Entes Federativos, a partir de prévia dotação orçamentária.
Nessa linha, a alteração constitucional, no que concerne aos militares estaduais, parece-nos seguir na contramão da política de descentralização federativa de Poder, tendo em vista que o Constituinte Derivado, com o discurso geral reformador, tendeu a atribuir maiores autonomias aos Estados.
Cumpre destacar, que apesar da promulgação da EC 103/2019, alguns dispositivos constitucionais sobre os militares estaduais permaneceram inalterados, a exemplo do § 1º, do art. 42, em que requer lei estadual específica para dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X.
À luz do inciso XXI, do art. 22 da CF/88, sobreveio a Lei nº 13.954/2019, que, dentre seus objetivos, visou alterar o Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, para reestruturar a carreira militar e dispor sobre o Sistema de Proteção Social dos Militares.
Concretizou-se, portanto, e em tese, a competência da União para dispor sobre normas gerais, regulando-se as balizas do Sistema de Proteção Social dos Militares, aqui, evidentemente, abarcando-se os militares estaduais.
A utilização da técnica de distribuição de poder político por meio do condomínio legislativo, atribuindo-se a edição de normas gerais à União e normas complementares e/ou suplementares aos Estados nem sempre conduz, no plano da execução, ao resultado desejado pelo Constituinte.
É possível, naturalmente, que nesse espectro de repartição de poder um Ente Federativo extrapole suas competências.
A criação de normas gerais por parte da União restringe a competência plena dos Estados sobre as matérias de competência concorrente, de modo que a incongruência nuclear da legislação estadual com as normas gerais, é capaz de gerar incompatibilidade insuperável.
Por outro lado, a União, na mesma medida, não está autorizada, ao editar normas gerais, especificar assuntos que devem ser feitos por diplomas normativos locais.
Explica Gonçalves que “na Federação, encontramos um processo de descentralização política no qual temos a retirada de competência de um centro para transferi-las para novos centros, o que irá gerar não uma unidade central, mas outras entidades parciais.”
O princípio federativo atua como princípio estruturante no momento em que representa uma diretriz hermenêutica dupla: Pode-se voltar ora para os aplicadores do direito, e principalmente, da Constituição; ora para o legislador no curso da elaboração das leis.
Tais contornos teóricos são de extrema relevância, pois uma coisa é o estabelecimento de normas gerais a serem observadas pelos Estados membros, algo diverso é, a pretexto da edição dessas normas, a ingerência na administração dos Estados, quer sob o ângulo direto, quer sob o indireto.
Nesses termos, não se pode na consecução da edição de normas gerais inferir na autonomia de outro Ente, sobretudo quando fragiliza a manutenção do equilíbrio financeiro de suas contas ou em vulneração da autoridade de cada Ente Federativo em se auto-organizar e autoadministrar.
Isso, aliás, eleva-se quando se cuida dos Regimes Próprios de Previdência Social – RPPS e Regimes Próprios de Previdência Militar – RPPM – do qual fazem parte os policiais militares e os bombeiros -, que, por mandamento constitucional, impõe-se a observância regular do equilíbrio financeiro-atuarial.
Portanto, faz-se imperioso que a União se limite, nos termos da CF/88, a editar normas puramente gerais, sem adentrar às peculiaridades e às especificidades a serem dispostas pelos Estados, à luz de sua realidade e dos contornos gerais delineados.
O ponto turbulento que aflora na nova perspectiva reformista, é que a União, por meio da Lei nº 13.954/2019, instituiu novas alíquotas a serem praticadas aos militares estaduais.
Dessa forma, as leis estaduais que outrora estipulavam alíquotas mais elevadas, devem, em razão da norma geral, formular adequações de obediência, eis que o art. 24-C da Lei 13.954/2019 aduziu que “incide contribuição sobre a totalidade da remuneração dos militares dos Estados, […] com alíquota igual à aplicável às Forças Armadas e, no que tange as alíquotas dos pensionistas e inativos, o percentual de 9,5% a partir de 1º de janeiro de 2020.
Em contraponto, os Estados, por meio de leis específicas anteriores à reforma, praticavam aos militares alíquotas entre 11% a 14%, conforme a saúde financeira dos fundos militares.
Após a publicação da Lei nº 13.954/2019, o Ministério da Economia, por meio da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, editou a Instrução Normativa nº 05/2020, estipulando que “ficam suspensas a eficácia das regras previstas na legislação dos Estados e do Distrito Federal sobre inatividades e pensões dos militares que conflitem com as normas gerais”.
Não são estranhos aos precedentes do Supremo Tribunal Federal – STF os casos em que a União extrapola sua competência para dispor sobre normas gerais, contudo, sempre se demonstrou turbulenta a conceituação do que venha a ser “normas gerais”.
O Min. Ayres Brito, quando do julgamento da ADI 3735 / MS, explicou que “a noção do que é verdadeiramente geral somente pode ser extraída a partir de um modelo posto em concreto, mas nunca de forma abstrata.”
No julgamento da ADI 3059, o Min. Teori Zavascki disse que:
O conceito de ‘norma geral’ é essencialmente fluido, de fronteiras incertas, o que, embora não o desautorize como parâmetro legítimo para aferir a constitucionalidade de leis estaduais, distritais e municipais, certamente requer maiores cautelas no seu manejo. Isso porque a amplitude com que a Suprema Corte define com conteúdo do que sejam “normas gerais” influi decisivamente sobre a experiência federalista brasileira.Qualquer leitura maximalista do aludido conceito constitucional milita contra a diversidade e a autonomia das entidades integrantes do pacto federativo, em flagrante contrariedade ao pluralismo que marca a sociedade brasileira.
Utilizou-se também como critério de identificação o princípio da preponderância do interesse, de sorte que as questões de elevada densidade e com necessidade de tratamento uniforme em todo território nacional, devem ser estipuladas genericamente pela União.
À luz da doutrina de Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento, Leonardo Martins e Roberto Mangabeira Unger, empreende-se que é preciso reconhecer aos Estados-membros o serviço de verdadeiros laboratórios legislativos, ou seja, como espacialidades em que se possibilita a procura de novas ideias sociais, políticas e econômicas, sempre na busca de soluções mais adequadas para os seus problemas peculiares.
Este mosaico é plenamente encapado por toda a Constituição, especialmente em matéria previdenciária, que possui também feição tributária quanto ao seu custeio, de modo que as alíquotas das contribuições previdenciárias terão como baliza a situação peculiar de cada RPPS/RPPM, não havendo como uniformizar uma alíquota específica.
Desse modo, alíquota será estipulada conforme as necessidades de cumprimento do equilíbrio financeiro e atuarial de cada RPPSs/RPPMs.
Como poderia, ainda, a União impor alíquotas se aos Estados recai a responsabilidade pela gestão e cobertura do déficit previdenciário de seus Fundos?
Ademais, em diversas passagens constitucionais acerca da fisionomia tributária das alíquotas, o Constituinte se limita a estipular apenas alíquotas máximas ou mínimas (videICMS, ITCMD, IPVA, ISS, Contribuições Previdenciárias), mas nunca um percentual determinado ou específico, justamente para respeitar a autonomia de cada Ente Federativo na sua política de arrecadação, acoplada às necessidades e às peculiaridades financeiras do seu sistema (déficit ou superávit).
Recordemo-nos que a Contribuição previdenciária para o custeio dos RPPSs/RPPMs é de competência tributária dos Estados, logo, a sua criação, a definição da base de cálculo, estipulação de alíquotas e demais consectários só podem ser dispostos pelo próprio Estado, sob pena de invasão indevida na distribuição de competências tributárias outorgadas pelo Constituinte Orginário.
Em reforço argumentativo, pode-se afirmar que a definição de alíquota determinada e específica não compõe o conteúdo de “norma geral” designado pelo Constituinte em matéria tributária, pois ao direcionar a necessidade de Lei Complementar para tratar sobre determinadas normas gerais tributárias, não se incluiu as alíquotas, in verbis:
Art. 146. Cabe à lei complementar:
[…]
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
Compreende-se o intuito do legislador em equiparar as carreiras militares federal e estadual, mas, há um óbice constitucional quanto às normas gerais, sobretudo ao limite material previdenciário-tributário de manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial, pois a gestão do RPPSs e RPPMs estaduais não é de competência da União.
É necessário permitir que cada ente da federação defina a alíquota da contribuição devida por seus servidores e pensionistas, de sorte a viabilizar que essa seja uma decisão coerente com a sua realidade, afinal, a competência tributária é do Estado e não da União.
Recentemente o Estado do Rio Grande do Sul ingressou com Ação Ordinária nº 3350 MC / DF, na Suprema Corte, a fim de inviabilizar a aplicação das alíquotas trazidas pela Lei nº 13.954/2019 (9,5%) e, por consequência, manter as alíquotas dispostas em lei estadual (14%).
O min. Luis Roberto Barroso entendeu, como recorte geral, que “parece fora de dúvida que a estipulação de alíquota nacional dificulta que características específicas dos Estados sejam levadas em consideração, o que pode prejudicar o equilíbrio de seus regimes”.
Com percuciente entendimento, o min. Barroso sintetizou muito bem os fatores contraditórios da situação:
Sob essa perspectiva, a edição de atos normativos cuja aplicação implicará a redução das alíquotas de contribuição praticadas pelo Estado revela comportamento contraditório. Isso porque, por um lado, a União exige dos demais entes públicos que adotem medidas que garantam o equilíbrio de seus regimes próprios de previdência, e por outro, restringe os meios para o alcance desse mesmo objetivo ao limitar a arrecadação do tributo instituído para financiá-lo.
Não se pode perder de vista, ademais, que as contribuições previdenciárias são espécies de tributo, com a finalidade exclusiva de financiar o sistema previdenciário, e, suas respectivas alíquotas, funcionam como o catalizador de intromissão na propriedade de cada servidor e militar conforme a realidade financeira de cada RPPS/RPPM.
Logo, permitir que a União imponha o percentual de alíquota a ser aplicado uniformemente por todos os Entes Federativo, abala substanciosamente a estrutura federativa republicana, especialmente as autonomias outorgadas pelo Constituinte, interferindo aprioristicamente, indevidamente e para além dos delineamentos autorizadores para edição de normas gerais, em especificidades previdenciário-tributária de conformação que somente cabem aos Estados.
Surge, na presente situação, um abalo nos diretivos constitucionais de atuação, criando, categoricamente, uma desfuncionalidade na efetividade do exercício das competências. Diga-se: inquestionável desestabilização do próprio pacto federativo.
Vê-se, destarte, como impossível determinar, genericamente, uma alíquota única a todos os Entes Federativos a suportar as necessidades administrativas e financeiras dos fundos previdenciários, sem considerar a realidade de cada Estado da Federação.
A pedra de toque da política previdenciária deve, de fato e de direito, prestar continência à regra constitucional do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário, caminhando-se pelo território do pacto federativo, de modo a garantir autonomia aos Estados conforme a distribuição de competências previdenciário-tributária dispostas na Constituição Federal para, à luz dos seus estudos atuariais, da realidade local e de normas efetivamente gerais, verificar, dentro da política tributária de cada Estado, qual a melhor alíquota a ser praticada ao RPPS/RPPM.