PANC x COVID-19 x ESCASSEZ DE ALIMENTOS: resgate, diversificação alimentar e biodiversidade na mesa podem ser grandes aliados em tempos difíceis como a pandemia que vivemos atualmente.

Não é de hoje que sabemos que a baixa variedade de opções alimentares facilmente disponíveis nas prateleiras de supermercados e feiras, está diretamente ligada a um sistema massificado de produção, direcionado a grandes culturas. Esse fato fica ainda mais evidente em regiões longínquas do Brasil, onde a dificuldade de acesso e aquisição de produtos, os tornam ainda mais invariáveis. 

Data-se que até 1500 eram consumidas cerca de 5000 espécies de plantas, sendo os frutos as partes mais utilizadas, atualmente esse número se reduz a 200 quando falamos em termos gerais, pois sabe-se que os sistemas produtivos são concentrados em grandes culturas como arroz, soja, trigo e milho, sem falar no foco em sementes selecionadas ou modificadas, restringindo nossas possibilidades alimentares. Uma incoerência, sobretudo na região Norte do Brasil, onde a exuberância de biodiversidade, além de fundamental para o equilíbrio dos ecossistemas amazônicos, detém inúmeros recursos florísticos disponíveis para consumo humano, principalmente diante de crises, como a pandemia que vivemos atualmente, onde a possível escassez de alimentos convencionais representa uma possível ameaça, levando inclusive a sociedade ao pânico com a estocagem de alimentos, motivo de grande preocupação diante do caos social que vivemos. 

Dentro desta temática, especialmente no extremo norte do Brasil, o estado de Roraima requer uma atenção especial, já que muitos dos insumos, assim como diversos alimentos são importados de outras regiões do Brasil, demandando uma logística maior que o normal para outras regiões de fácil acesso. Se antes já pontuávamos que são ínfimas as pesquisas em relação aos usos e potencialidades da flora amazônica e ações efetivas preocupadas em aproximar as pessoas do conceito de biodiversidade, agora elas são imprescindíveis. Percebeu-se no início do isolamento pela pandemia, mesmo que de forma sutil, algumas dificuldades em encontrar certos produtos nas prateleiras de supermercados.

Recentemente foi publicado na revista científica RECEI, vinculada a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, um artigo onde foram listadas pelo menos 177 espécies vegetais disponíveis em Roraima para o consumo humano, com prospecção de ser um número muito maior, que em sua grande maioria são absolutamente ignoradas pela população local, mesmo podendo ser encontradas em diversos locais urbanos ou rurais. 

O respectivo artigo trata de plantas que por serem negligenciadas ou subutilizadas como alimento, encontram-se  no conjunto das denominadas PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais), ou seja, um grande potencial de plantas ou parte delas, facilmente encontradas na região, que podem ser inseridas na alimentação humana por meio do consumo de suas raízes, tubérculos, bulbos, rizomas, ramos, folhas, brotos, flores, frutos, sementes, leites, óleos comestíveis, etc., mas que são desconhecidas ou ignoradas para esse fim, apesar do grande incremento nutricional e funcional que podem representar para a população humana. Sabe-se que quanto maior a variedade de alimentos ingeridos, maior é a possibilidade de ampliar a gama de nutrientes que podem ser absorvidos pelo organismo, e desta forma podendo-se dizer que tal beneficio auxilia no fortalecimento do sistema imunológico, que tanto tem-se falado como uma das alternativas para enfrentar os malefícios causados pelo COVID-19.

A história conta que muitas civilizações declinaram de forma associada à falência de seus sistemas agrícolas. Hoje, cerca de 2% da população brasileira vive em insegurança alimentar, de forma que o conhecimento sobre a produção e o uso de PANC para suprir a alimentação humana, vão de encontro a processos de minimização e de combate a fome e a desnutrição. Uma das dicas para nos direcionar rumo a autonomia alimentar é a produção de pequenas hortas em nossos jardins e quintais, tornando-os mais “comestíveis”, incluindo inclusive flores alimentícias de espécies como ora-pro-nóbis, diversas espécies de hibiscos, beldroegas e begônias, que são ótimas opções para iniciar a diversificação do nosso cardápio alimentar. Isso sem falar em belas frutíferas como os araçás, caçaris, muricis, pitangas, jenipapos; hortaliças, ervas e temperos como pepinos ruderais, bertalhas, alfavacas, salvas-do-campo, tubérculos, etc., que apesar dos altos teores de antioxidantes e vitaminas que possuem, são tão raros em nossos pratos, feiras e prateleiras, mesmo sendo mais resistentes e de fácil cultivo. 

Falar de PANC atualmente, principalmente em lugares mais afastados dos grandes centros do país como o nosso, é chamar a atenção para uma alimentação mais acessível, através de inúmeras potencialidades disponíveis, não é de hoje que se fala que o uso e a valorização destas plantas são importantes para nossa transformação social, com consequências positivas para as economias locais, seja pela democratização da  alimentação, pelo resgate cultural ou proteção da biodiversidade. As recentes pesquisas e trabalhos publicados com PANC, apontam o uso da biodiversidade na alimentação como forma de contribuir tanto para ações conservacionistas como para a ampliação de fontes de nutrientes disponíveis à população, promovendo a soberania, a autonomia e a segurança alimentar.

Diante do quadro pandêmico atual, vem à tona, a necessidade de se repensar como, onde e de que forma estamos vivendo, qual a magnitude da nossa segurança, soberania e autonomia alimentar, como cuidamos do nosso entorno ambiental, quais as propostas e propósitos dos nossos jardins e quintais, sejam eles urbanos ou não, principalmente em Roraima, onde grande parte da população tem o privilégio de morar em casas com áreas disponíveis para plantios. E dentro desta premissa, sugiro uma reflexão sobre a necessidade de sermos protagonistas, olhando com mais afinco o que nosso entorno tem a nos oferecer e do que podemos lançar mão para nossa própria sobrevivência. Essa reflexão certamente vai nos levar as plantas não convencionais em nosso cardápio, levando-nos a perceber o leque de opções que temos contra a crise que estamos enfrentando. 

No contexto atual, práticas e soluções mais seguras, além de representarem um ponta pé inicial no entendimento sobre a importância da soberania alimentar em nossa região, ainda podem incentivar produtores locais mais encorajados a investirem na diversificação de culturas que facilitem nosso acesso a uma maior diversidade de opções alimentícias e nutricionais independente dos grandes centros. 

E não somente para este fim, falo também de nossa autonomia para muitas outras situações, atividades e produtos, uma vez que antes da crise, tudo parecia estar sempre pronto para satisfazer nossas necessidades. Talvez essas facilidades não sejam mais a melhor opção em tempos de distanciamento social. Reaprender a viver e a sobreviver, se reinventar pode retirar as vendas dos nossos olhos, nos fazendo enxergar nosso quintal real e metafórico, auxiliando nossa vida em vários sentidos.

Professora Dra. Mahedy Passos (Bióloga-Botânica)

Autora do Livro PANC é POP, sobre Plantas Alimentícias Não Convencionais e Docente do curso Técnico em Agroindústria de Alimentos do Centro Estadual de Educação Profissional de Roraima – CEEP