Quem aqui nunca dividiu a vida entre real e virtual? Amizades reais e amizades virtuais, grupos reais e grupos virtuais, aulas reais e aulas virtuais, problemas reais e problemas virtuais… E por aí vai. Nós criamos essa categoria de acontecimentos de coisas que fazem parte de nossas vidas, e frequentemente usamos a categoria de “coisas virtuais” como sendo menores ou menos importantes. “É meu amigo, mas é só virtual”, “Eu discuti, mas foi pela internet”, “Acabou, mas era só um webnamoro”. Essas são frases que já ouvi durante meus atendimentos. Talvez antigamente fizesse sentido essa divisão, porque a parte virtual de nossas vidas era realmente pequena. Só alguns minutos por dia no computador do trabalho, só algumas horas na internet durante e madrugada (quando pagávamos apenas um ‘pulso’, lembram?). Mas e agora, que a internet está, literalmente, nas nossas mãos o tempo inteiro. Será que essa divisão faz sentido?
No que diz respeito à divisão física, realmente existe uma vida real (aquela que podemos pegar, cheirar, sentir), e uma vida virtual (a que está por trás de uma tela). Só que a divisão acaba por aí. Quando pensamos em sentimentos, emoções, percepções e afeto, no sentido de aquilo que nos afeta, essa divisão não existe. E por que isso é importante? Porque se continuarmos tratando a vida virtual como sendo menos importante que a real, acabamos negligenciando o tanto de influência que essa vida por trás das telas tem em nossos sentimentos e emoções.
Dessa forma, o nosso corpo é capaz de sentir da mesma forma uma briga que está acontecendo na nossa frente e uma briga na sessão de comentários de uma rede social. Sentir da mesma forma um elogio feito por um colega próximo, quando chegamos, e um elogio em uma foto no Instagram. Sentir da mesma forma uma crítica em uma reunião de feedback ou uma crítica recebida online. Não é à toa que o chamado cyberbullying é crime e é muito grave. O que acontece na internet não só afeta, mas pode destruir vidas. Perceber tudo isso é o primeiro passo para refletirmos qual o espaço que a nossa vida virtual está ocupando no nosso dia a dia, e principalmente no nosso humor.
Às vezes podemos estar estressados, cansados, exaustos, e ainda nos sentimos culpados porque nem aconteceu nada de diferente no nosso dia para estarmos assim. E naquelas horas que passamos rolando o feed no celular, o que aconteceu? E como fomos afetados? Emocionalmente, o nosso dia é construído por tudo aquilo que vivenciamos: na vida real e na vida virtual. Pode até ser que seja difícil de perceber como cada notícia, comentário, discussão, violência, nos afeta instantaneamente. Mas no final do dia, temos um emaranhado de vivências virtuais acumuladas, e tudo isso pode pesar ao longo do tempo.
Imagine que você está sentado em um restaurante e acontece, na sua frente, tudo o que aconteceu no seu dia virtual: você vê várias pessoas, escuta várias conversas, presencia algumas discussões, e talvez até algumas formas de violência, preconceitos e discursos de ódio. Imaginou o caos? Quanto tempo seria possível aguentar continuar sentado nesse restaurante presenciando tudo isso? A notícia é: emocionalmente, você está sentado nesse restaurante presenciando tudo isso. Pesado, né? Pois é. Talvez assim seja um pouco mais fácil de perceber o porquê estamos tão exaustos. Tem a vida acontecendo lá fora, e a vida acontecendo na palma de nossas mãos, e as emoções só se somam.
Pode ser que não seja possível mudar nada, a princípio, tendo essa percepção. No entanto, perceber a forma como somos afetados é o início de uma reflexão sobre o papel dessa vida virtual naquilo que sentimos. Conhecer é o primeiro passo, essencial, para a mudança. Talvez seja a hora de se levantar um pouco e sair desse restaurante, tomar um ar fresco, olhar para a natureza. Esse texto é um convite para, de repente, passar a frequentar um restaurante diferente, escolher quem estará lá, escolher o que irá te afetar. A má notícia é que não podemos escolher como somos afetados pela nossa realidade. A boa notícia é que podemos, pelo menos um pouco, escolher qual é nossa realidade.
Por: Marjorie Rodrigues Wanderley, psicóloga, professora da Estácio, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Paraná.