Download de material gratuito: posso ser preso por isso?

Esta é, certamente, uma questão bastante complexa. Poderíamos fazer várias analogias para melhor trazer à compreensão o tema ao leitor comum. Imaginemos o seguinte:

Aquele seu vizinho gente boa, apaixonado pelos Santos Futebol Clube, compra um DVD dos 1000 gols do Pelé, paga regularmente por ele, e esse bem corpóreo (DVD) se incorpora ao seu patrimônio material – contudo, no verso vem escrito: “(…) proibido a reprodução em locais públicos, e o repasse a terceiros, ainda que a título gratuito”.

O autor tem o poder de criar esses limites ao uso do adquirente?O seu direito autoral é pleno? Absoluto? … Poderia ele dizer “eu criei, e, portanto, decido as regras do jogo conforme me autoriza o art. 5º, XXVII da Constituição Federal!”, é isso? Não, não é bem assim, vejamos o que diz o referido artigo:

XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar.

Numa primeira análise realmente pode parecer isso. Mas no direito não se interpreta apenas o mandamento “frio e literal” do texto da lei.Precisamos aqui avaliar a função social da propriedade intelectual, o contexto social, econômico, cultural, e inclusive, a ofensividade e aceitabilidade de certas condutas do ponto de vista do interesse público.

Voltando ao caso do nosso exemplo anterior. A família daquele nosso amigo santista resolve fazer uma festa de aniversário para este, e colocam uma TV LCD – no pátio de frente à rua – rodando o vídeo para todos os presentes assistirem (mais de 100 pessoas, entre amigos, parentes, vizinhos e curiosos), assim como o aniversariante. Passam o vídeo e todo mundo acha o maior barato. Logo, pedem emprestado, e a família libera o uso. E num ciclo vicioso, de maneira gratuita e na base da solidariedade, quase o bairro inteiro já assistiu gratuitamente aquele DVD, sem pagar nada por isso.

Pergunto: Estamos diante de um crime autoral?

Data maxima venia, respeitando as posições contrárias, a resposta juridicamente mais correta é: não, não se trata de um crime. Isto porque, o direito criminal é, sem a menor sombra de dúvidas, a ULTIMA RATIO PUNITIVA, e deve se preocupar com as condutas efetivamente graves do ponto de vista sociológico, humano e do interesse público e coletivo.

Uma conduta que socialmente não é rejeitada ou repudiada pela sociedade, não pode ser criminalizada. Incriminar uma conduta aceitável pela sociedade e que não tenha potencial ofensivo, certamente seria criminalizar a própria vivência e convívio social, tornando criminosas pessoas sem potencial destrutivo ao interesse público. Estaríamos produzindo, de maneira maléfica, rótulos depequenos criminosos, e tecnicamente estaríamos dizendo que estas precisariam serem ‘ressocializadas’., o que não faria sentido.

O art. 184 da lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 – Lei do Direito Autoral– dispõe o seguinte:

  • 1º Se a violação consistir em reprodução total ou parcial,com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)

Ante a clareza do texto da norma, nos parece muito acertado entender que aquele objeto a ser analisado nos casos concretos é o “intuito de auferirProveito Econômicocom o trabalho intelectual alheio, sem o pagamento em contrapartida dos respectivos direitos autorais”.

Muitas pessoas devem estar se indagando: Mas ora, a pessoa que adquire gratuitamente, também obtém uma vantagem econômica, pois, ela deixa de abrir mão do seu patrimônio para contemplar esta aquisição, e genericamente falando, economizar também seria uma forma de valorização de rendimentos pessoais, ou não?

Bem, sob um ponto de vista mais ampliativo até poderíamos discutir tal argumento, todavia, o § 4º do referido diploma, vem justamente para mostrar que o espírito da norma não é este, ao dizer que a reprodução para uso particular é admissível, desde que não se objetive ganhar dinheiro com esta reprodução, desde que o intuito seja meramente didático e para o uso próprio. O que se busca aqui é incentivar a difusão e incentivo àbusca e obtenção do conhecimento, pois, é através desta difusão que impulsionamos o aparecimento de novos criadores, inventores, novos gênios da ciência e da própria literatura. Senão vejamos:

  • 4º O disposto nos §§ 1º, 2º e 3ºnão se aplica quando se tratar deexceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei nº9.610, de 19 de fevereiro de 1998,nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copistasem intuito de lucro direto ou indireto. (Incluído pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003).

A lição que tiramos é que, não podemos banalizar o conceito de direito autoral e da sua indisponibilidade. O que se está a proteger é aobtenção de proveito econômico com trabalho alheio e sem a respectiva contrapartida ao titular dos direitos autorais.

Destarte, o conhecimento, antes de ser um bem individual e particular, deve ser tratado como um bem público, de interesse e direito de todos. Assim, da mesma maneira em que se admite que o Estado intervenha no Direito de Propriedade Privada para fazer cumprir o interesse coletivo, também pode intervir na Propriedade Intelectual Privada para fazer o mesmo, criando concessões e exceções que se amoldem ao clamor social e às necessidades da Coletividade.

Quando produzimos um livro, certamente empenhamos neste todo o nosso esforço intelectual e científico armazenado ao longo dos anos – fruto da leitura de outros trabalhos, inclusive, muitos adquiridos gratuitamente –, gastamos com sua matéria-prima, como impressos, papéis, serviços de terceiros, transporte, dentre outros custos, e por isso, devemos sim ter o direito de cobrar por isso. Contudo, à medida que um terceiro paga pela aquisição deste material – e desde que a título gratuito o faça a partir daí, sem obtenção de proveito econômico para si ou para outrem – não cabe mais ao direito penal, decidir o que pode ou não pode o adquirente fazer com o referido bem – que agora se incorporou ao seu patrimônio físico –, de modo que, poderia livremente emprestar, doar, reproduzir em público, ou dar a quem quer que o seja (desde que para uso pessoal do interessado e sem o intuito de lucro).

Mas surge uma nova pergunta: Poderia então, sem cobrar nada, reproduzir inclusive em um restaurante da família? Nesse caso não, pois, a cobrança e obtenção de lucro está indiretamente inserida nos demais serviços do estabelecimento, e a reprodução gratuita passa a ser um ‘atrativo de entretenimento a mais para o consumo e aumento dos lucros daquele comércio’. Assim, o que deve ser analisado, a nosso ver é o contexto em que se dá o uso do material adquirido e a obtenção ou intuito de obtenção – ainda que de maneira indireta – de lucro, de acréscimo financeiro ao seu patrimônio.

Do mesmo modo, se este adquirente, resolve fazer cópias e vender para terceiros ou reproduzir em seu estabelecimento comercial, por exemplo, neste caso sim, estaria a auferir proveito econômico de modo ilegal, e deveria responder pelo crime respectivo à violação dos direitos autorais.

Imaginemos, por outro lado, que esse indivíduo – adquirente do livro‘Como salvar o meio ambiente?’ – seja presidente de uma ONG, a qual ensina a Comunidades Ribeirinhas a cuidar da floresta e das margens dos rios junto à sua Comunidade. Esse Presidente compra o referido livro, pagando regularmente por ele, faz fotocópias e distribui para todas as crianças e moradores daquela Comunidade Ribeirinha. Essas crianças e moradores o leem, adquirem o conhecimento, e transformam aquela realidade ambiental em poucos meses. Ao tomar conhecimento o autor do livro toma as medidas cabíveis, e de repente estão respondendo pelo crime respectivo aqueles moradores e o presidente autor da conduta. Pergunto:Todas essas pessoas deverão responder criminalmente? Isso se amolda ao escopo do direito? Certamente que não.

Do mesmo modo, pensamos que não se pode criminalizar aquele que obtém, seja pela via da Internet ou pela via física, material a título gratuito ou voluntário, visando exclusivamente a aquisição do conhecimento, isto porque, a Propriedade Intelectual também deve atingir a sua “função social” de colaborar com o desenvolvimento da humanidade.

O mais adequado neste caso é que os sites que tiverem o intuito de obtenção de Proveito Econômico com essa veiculação, estes sim,sejam criminalmente imputados por isso e não os leitores adquirentes (exceto, se também tinham conhecimento da ilicitude por parte do disponibilizador, à exemplo das pessoas que pagam mais barato pelo material junto a terceiros oportunistas).

A questão é que, precisamos compreender que mesmo alguns sites que não cobram nada aos internautas para distribuir o material, geralmente obtém algum proveito econômico com isso, como por exemplo, através da “hospedagem de propagandas” ou com a “obtenção de um número elevado de likes ou curtidas”, ou mesmo através do elevado “registro de acessos”, casos em que recebem contrapartida pecuniária de Empresas Cibernéticas como as gigantes Googleou aYoutube, por exemplo. Nessa situação, claramente, a distribuição gratuita de material funciona como aquele exemplo do restaurante que ‘roda’ o DVD dos 1000 Gols do Pelé, claramente, numa espécie de “atrativo”para alavancar os negócios, o ganho pecuniário e o consumo dos demais produtos, atraindo hóspedes e patrocinadores, e, por isto, é justo e razoável que paguem por este uso.

É certo que, salvo raras exceções, ninguém é tão altruísta assim ao ponto de gastar horrores com um material geralmente caro, e, depois, despender seu tempo e trabalho, para sair distribuindo na Internet de maneira gratuita para todos, aquilo que lhe custou muitos insumos pessoais. Por isso, é inequívoco que, na maioria dos casos, quem distribui – ainda que gratuitamente – geralmente está auferindo algum ganho com o seu ato de bondade. Por isso, entendemos que o foco punitivo deva se preocupar justamente com esse ponto circunstancial da OBTENÇÃO DE GANHO ECONÔMICO OU DE OUTRAS NATUREZAS, ainda que de modo indireto.

Com isso, a prática delituosa diminuiria, e a sociedade – com menor potencial aquisitivo – poderia continuar a usufruir do conhecimento, se valendo de fontes intelectuais que, se não fosse pela caridade de um ser humano qualquer, jamais lhe seria acessível, e com isso, continuaremos a possibilitar que pessoas que não tenham a condição de adquirir certos materiais pela baixa questão aquisitiva, pela voluntariedade de outros, possam continuar a se enriquecer com o conhecimento já produzido, e assim, em momento superveniente, possa devolver essas benesses em forma de contribuição de qualidade à raça humana, através de inventos, descobertas, curas de males, e outros.

Enfim, precisamos distinguir as coisas, pois é esta a finalidade do direito: Devemos, sim, combater o ladrão de pães de uma padaria, todavia, não se pode criminalizar o pobre coitado que comeu os farelos que caíra do caminhão, simplesmente porque tinha fome.

 

*Maykell Felipe Moreira

Advogado e Consultor Jurídico Especialista nas áreas do Direito Administrativo | Concursos Públicos | e do Consumidor. | Atuou em funções como Chefe de Seção Especializada em Autarquia Federal | Núcleo de Defesa do Estado da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce. Autor de artigos Jurídicos em periódicos de renome, os últimos nas Revistas RT – Revista dos Tribunais, GOVERNET – especializada em Administração Pública, Zênite, Conteúdo Jurídico, Jus Navigandi | etc.