Ronaldo Mota*
Educação é uma das mais relevantes e eficientes ferramentas para a promoção de oportunidades de ascensão social. Porém, educação não é um instrumento neutro; ao contrário, por ser tão eficaz, ela funciona, em certas circunstâncias, cumprindo também o papel oposto, ou seja, o perverso aumento das desigualdades e a cristalização da exclusão.
Os tempos mudaram e certos conceitos ficaram para trás. Fácil perceber que os títulos de nobreza, muitos deles hereditários, têm bem menos relevância atualmente do que desfrutavam antigamente. Mais recentemente, as camadas mais esclarecidas e privilegiadas, progressivamente, percebem que há algo mais importante do que simplesmente deixar riquezas materiais aos seus herdeiros. Trata-se, principalmente, de proporcionar às crianças e aos jovens capacitação intelectual diferenciada, incluindo todas as formas de competências e habilidades, tal que lhes permitam competir em condições favoráveis quando adultos.
Ainda que em si elogiável e coerente tal atitude, interessante observar que, em consequência, remete ao poder público e à sociedade em geral um desafio complexo e sofisticado. Aquilo que os pais decidem fazer com seus recursos, dentro dos limites apropriados, é de competência exclusiva deles e optar por investir em educação é legítimo e elogiável. No Brasil, dados disponíveis mostram claramente que a máxima correlação entre os aprovados nos vestibulares mais concorridos está associada, mais do que à renda familiar, à escolaridade dos pais. Ou seja, pais escolarizados tendem, o que é natural, a ter mais preocupação com o tema e propiciam, direta ou indiretamente, um contato doméstico com letramentos preliminares, acessos a leituras e demais suportes complementares. Ao Estado cabe decifrar o contexto e implementar políticas públicas compatíveis que viabilizem procurar igualar oportunidades.
Na China, na província de Xangai, escolas particulares para selecionar seus alunos realizam testes com os respectivos pais e avós, fazendo dos passados educacionais e profissionais deles critérios para aceitação de seus filhos. Na mesma medida em que a desigualdade de renda cresce, os pais da emergente classe média chinesa abandonam as escolas públicas à procura de diferenciais que permitam angariar vantagens aos seus filhos. Neste caso, educação, projetada para atuar em direção à igualdade de oportunidades e aumento de mobilidade social, funciona como cristalização de diferenças e, eventual, eternização de desigualdades.
O drama maior, seja no Brasil ou na China, não é a oportunidade de boa educação aos filhos dos mais ricos ou escolarizados, mas sim a insuficiente qualidade da educação reservada aos menos favorecidos, resultando, na prática, numa gigantesca perda de talentos. Como consequência, ao desperdiçar talentos, a capacidade global da sociedade, em termos de desenvolvimento social, econômico e
ambiental, é afetada negativamente. O que podemos estar aceitando é introduzir um nível cada vez mais forte de artificialidade em um processo que deveria, em princípio, ser baseado em maximizar as potencialidades de todos. Os futuros cidadãos e profissionais estariam largando de bases muito desiguais na infância, permitindo aos felizardos que, mesmo com menos talento, possam sobrepujar aos demais, eventualmente mais capacitados, porém, excluídos antes da partida começar.
A nobreza perdeu privilégios, fruto das revoluções republicanas. As democracias recentes impuseram ao domínio simples do capital algumas derrotas, expressas por importantes conquistas sociais. Claramente não havia correlação direta entre nobreza ou riqueza com talento, portanto, aquelas perdas foram reconhecidas como justos avanços e ganhos de produtividade. A versão contemporânea dos títulos de nobreza ou da riqueza de bens materiais é o papel reservado à escolaridade dos pais. Fenômeno este que se torna mais evidente quando a maioria deles viveu, quando jovens, em sociedades, a exemplo de Brasil e China, com relativamente baixo acesso à educação.
O enfretamento positivo deste tema é muito complexo e não há medida isolada que dê conta do enigma. A utilização intensa e adequada das oportunidades que as tecnologias digitais propiciam de acesso pleno, instantâneo e gratuito ao conhecimento, certamente, faz parte do conjunto de soluções. Cabe ao poder público e às demais iniciativas da sociedade, em seus planos de conjugar qualidade e quantidade, saberem decifrar este sofisticado e urgente desafio.
*Reitor da Universidade Estácio de Sá