Gilberto Alvarez (*)
O desenvolvimento e a avaliação das chamadas habilidades socioemocionais está na ordem do dia da educação.
A mais recente versão da Base Nacional Curricular Comum, por exemplo, já estabelece que as escolas devem estimular os jovens a ter autonomia, proatividade e senso crítico. Políticas públicas educacionais que utilizam essas referências têm o objetivo de promover uma formação mais ampla e moderna, preparando os estudantes para os novos desafios da sociedade contemporânea.
Algumas universidades particulares têm elaborado cenários nos quais candidatos são avaliados sob um novo padrão de desempenho, que vai além das habilidades cognitivas. São provas que exigem criatividade, liderança, tenacidade, cooperação e bom senso para a resolução de problemas.
As habilidades socioemocionais são parte de uma nova concepção de educação, que se contrapõe à escola tradicional, focada em disciplinas como português e matemática. Segundo esse novo paradigma, não basta saber ler e fazer contas para viver, produzir e se destacar.
O uso desses referenciais em avaliações ganhou força a partir da circulação de um documento internacional denominado Social and Emotional Non-cognitive Nationwide Assessment (SENNA) – produzido no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e voltado para a avaliação em larga escala desses componentes em processos de aprendizagem.
Como ferramenta de avaliação em larga escala, esse documento foi apresentado como consequência e aperfeiçoamento do PISA – Programme for International Student Assessment, e enfaticamente defendido por entidades ligadas aos ramos empresariais e até cogitado como política pública pela Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro.
As habilidades socioemocionais descritas nesse documento-raiz dizem respeito a: 1) Abertura a novas
experiências, 2) Extroversão, 3) Amabilidade, 4) Consciência, 5) Estabilidade emocional.
Esses temas são desenvolvidos por estudiosos da psicologia das diferenças individuais. E, então, considerados fatores universais de habilidade socioemocional, passíveis, portanto, de verificação e avaliação.
O Estado do Rio de Janeiro tentou implantar tais conteúdos no 5º ano do Ensino Fundamental até o 3º ano do Ensino Médio.
O desafio de aplicar de tais princípios numa rede pública está na forma de avaliá-los em larga escala.
É necessário no mínimo prudência, uma vez que a intenção de verificar a presença de abertura, extroversão, amabilidade, consciência e estabilidade pressupõe, também, uma percepção clara de seus opostos. Ou seja, o que define uma pessoa não amável? A partir de que momento a estabilidade emocional se mostra presente e com quais características? E o que é exatamente um jovem não estável?
Essa intenção de aferir e, mais do que isso, aferir em larga escala, tem “parentesco ideológico” com a aferição do Quociente de Inteligência (QI), que, embora seja objeto de intensa reprovação acadêmica é sempre retomada como se tivesse algo a mostrar quando indica que alguém “é” um 123 e outro “é” um 94?
Converter habilidades socioemocionais em projeto de ensino e de avaliação passa por reconhecer a expressiva variação histórico-cultural “embarcada” em palavras como extroversão, amabilidade, consciência e estabilidade emocional.
Portanto, é importante reconhecer que não estamos diante de um repertório natural, de fundo biológico ou genético, cuja presença possa ser universalmente reconhecida e particularmente aferida, de modo a chegar a resultados estatísticos que “comprovem” que tais alunos são mais amáveis ou criativos que outros.
Vale ressaltar que habilidades socioemocionais podem facilmente se confundir com valores morais passíveis de serem defendidos como legítimos, mas incompatíveis com
a noção de universalidade. Será que criatividade, por exemplo, é o mesma na Namíbia, nos EUA, no Brasil e no Paquistão?
É interessante lembrar que, na primeira metade do século XX, Margareth Mead, antropóloga cultural norte-americana, já apresentou as mesmas questões em relação às palavras “temperamento”, “masculino” e “feminino” e concluiu que não eram palavras com definição exprimível no plano universal, mas que sofriam variações no plano singular.
Se, por um lado, é quase consensual a percepção de que a formação escolar não deve se restringir a conteúdos disciplinares – tanto é assim que há três décadas ganha força a defesa da interdisciplinaridade -, por outro lado, isso não deve facilitar processos de redução das dinâmicas avaliativas às chamadas características biológicas individuais.
É perceptível que presenciamos esforços para compreender e superar o fracasso escolar e as dificuldades com o acesso ao Ensino Superior e ao mundo do trabalho. Porém, é fundamental não empreender esse esforço retomando somente bases estatísticas e quantitativas.
É importante prosseguir no esforço de ampliação, no trabalho dos projetos pedagógicos, do espaço para conteúdos que não se reduzem ao acúmulo de disciplinas. Mas também é fundamental que esse esforço não se torne presa de notas e resultados, porque habilidades socioemocionais não serão atestadas por meio de uma prova comum.
(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.