O retrocesso no ensino médio

Por Gilberto Alvarez Giusepone Jr. (*)

Quando a reforma do ensino médio foi esboçada, pela Medida Provisória nº 746 e, na sequência, sancionada com a Lei nº 13.415, a sociedade brasileira passou a se perguntar quais seriam as consequências das mudanças produzidas.

A primeira reação foi de perplexidade, uma vez que reformar algo tão estratégico e complexo como o ensino médio, por suposto, não deveria ser objeto de uma Medida Provisória, mas de legislação ordinária, depois de um amplo processo de debates no Congresso e na sociedade.

E parcela expressiva dos educadores e pesquisadores do campo da educação também percebeu a ausência, na formulação do projeto, daqueles que têm acumulado conhecimento a respeito.

Enfim, estava aberto um processo que se revelou turbulento já em seus marcos inaugurais.

Uma demonstração clara da precipitação que acompanhou o processo pode ser reconhecida no fato de que, após alguns meses, restam inúmeras questões aguardando respostas por parte do Ministério da Educação.

A reforma do ensino médio alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN 9394/1996); a Lei de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais de Educação (FUNDEB); e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) relacionadas à educação.

Em relação à LDB, entram em cena a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como estrutura definidora de conteúdos e a flexibilização curricular como estratégia da aplicação de conteúdo conforme opções prévias.

Mas também em relação à LDB desponta uma personagem educacional nova, que não sem razão despertou desconfiança e resistência da parte dos educadores. Essa personagem é o professor “notório saber”.

Há grandes dificuldades a superar nesse sentido.

O “notório saber” tende a ser um fator decisivo na consolidação de um retrocesso.

Qual retrocesso?

A reforma reorganiza o ensino a partir de itinerários formativos, resultantes da “opção” por linguagem e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e suas tecnologias e, por fim, formação técnica e profissional.

Cumpridas as bases obrigatórias, definidas em 60% do currículo, os itinerários se dariam por escolha entre essas opções.

Primeira questão a ser enfrentada: dificilmente todas as opções estarão ao mesmo tempo disponíveis e oferecidas em igualdade de condições estruturais, técnicas e pedagógicas. É bastante possível que em determinados locais ou em determinadas escolas predomine, conforme circunstâncias específicas, algumas opções em detrimento de outras.

Segunda questão a ser enfrentada, e essa é decisiva para compreender o risco de retrocesso: tal como se apresenta, a reforma retomou a divisão entre saberes propedêuticos, que preparam para o ensino superior, e saberes técnicos, que se encerram na terminalidade do nível médio.

Isso fica visível na presença desse professor “não-docente” que é o notório saber. Ou seja, é para o itinerário da profissionalização que entra em cena o “prático”, aquele que pode ensinar sem formação docente e pedagógica.

Àqueles que seguem em direção ao ensino superior se estabelece uma conexão com o universo da formação de professores, pois para esses não está prevista a presença do notório saber.

Àqueles que optam pela profissionalização, o docente formado é passível de substituição por esse que notoriamente “aprendeu fazendo”, categoria de enorme complexidade e sem nenhum cuidado definidor por parte do Ministério da Educação.

Trata-se, portanto, de um risco claro de estratificação educacional. Em outras palavras, a reforma está muito próxima de retomar a divisão superada após 1988 e reintroduzir uma modalidade de ensino para quem se aproxima do universo do trabalho e outra para quem prossegue estudando.

Esse descuido reverbera também no âmbito do ensino noturno.

Considerando que a reforma amplia carga horária (de 800 para 1.400 horas) e a jornada (de 4 para 7 horas), como ficará a situação do aluno do ensino noturno?

Trata-se de uma imprecisão que, ao termo, poderá acentuar muitíssimo a distância entre os ensinos diurno e noturno.

Na síntese que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) elaborou a respeito da reforma do ensino médio uma comparação foi destacada com muita propriedade. O IPEA chama atenção para o risco de se ter um ensino para o homo sapiens e outro para o homo faber.

Trata-se um jogo de palavras que, infelizmente, pode espelhar a realidade retratando, no âmbito do ensino médio brasileiro, a tão danosa concepção que separa “quem pensa” de “quem trabalha”.

Reformas estruturais tão abrangentes devem ser acompanhadas de prazos e metas. A esse respeito as indefinições são ainda maiores e impressionantemente vagas.

A única precisão a respeito é bastante preocupante. O prazo de financiamento específico é de dez anos.

O Brasil tem aproximadamente um milhão e oitocentos mil alunos no ensino noturno.

Tem expressivo número de escolas particulares atuando no segmento de ensino médio.

Tem um número de matrículas que cresceu consistentemente nos últimos 20 anos.

Portanto, uma reforma desse porte não deve ser acompanhada de indefinições que só fragilizam o processo.

Se definições mais obvias como a da ordenação das opções de estudo não estão formalizadas como, por exemplo, na ausência de indicações sobre quais estudos são sequenciais e quais são concomitantes, as indefinições estruturais como as de financiamento e de prazos geram a surpreendente expectativa de que essa reforma, tão permeada de controvérsias e expectativas, possa, na verdade, não sair do papel.

A sociedade brasileira e particularmente seus educadores aguardam definições e têm a expectativa de que os déficits democráticos visíveis na tramitação sejam superados.

Ainda persiste a esperança de que os retrocessos que se anunciam possam ser revertidos, para que a reforma do ensino não se torne mais um dado a lamentar quando há, indubitavelmente, muito a fazer.

(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.