Educação contra a barbárie

Por Gilberto Alvarez (*)

O filósofo alemão Theodor Adorno propunha que, nas sociedades democráticas, deveria sempre haver espanto diante da violência e da barbárie. E essa reação civilizatória seria alcançada se essas sociedades desenvolvessem uma educação que possibilitasse a humanização do indivíduo, ou seja, uma educação que formasse sujeitos emancipados e autônomos.

Nos últimos tempos, no entanto, temos assistido, no Brasil e no mundo, a uma escalada inacreditável da violência. São episódios cotidianos que demonstram que vários limites foram e estão sendo perigosamente ultrapassados – limites relacionados à civilidade, ao mais elementar humanismo e, principalmente, ao respeito pela vida. Assistimos a uma “banalização do mal”, para parafrasear Hannah Arendt.

Arendt, aliás, publicou, no emblemático ano de 1968, o livro Homens em tempos sombrios recuperando a trajetória de pessoas que resistiram, com senso crítico, aos tempos em que a barbárie se anunciava de diversas formas, com múltiplos conteúdos e, sem dúvida, com utilização de estratégias que projetam rastros de sangue, ódio e intolerância.

Em tempos sombrios os educadores também têm muito a falar.

Como lamentavelmente estamos mergulhados num oceano de acontecimentos dos mais lamentáveis, talvez a maior contribuição que os educadores possam dar a respeito do tema violência tenha a ver com a reafirmação do papel que a escola pode desempenhar nesse contexto.

Nas décadas de 1980 e 1990, com o aumento expressivo nas pesquisas sobre educação, foi possível perceber também o refinamento de certos temas.

Assim, por exemplo, muitos escritos propuseram metodologicamente separar as abordagens que se referiam à violência da escola em relação à violência na escola.

A violência da escola dizia (e ainda diz) respeito aos processos de produção do fracasso escolar e da transformação das diferenças em desvantagens pessoais e coletivas.

A violência na escola era (e ainda é) um tema que se dedicava aos fatos específicos nos quais se estilhaçava a integridade física ou moral ou psicológica de pessoas ou grupos num espaço que deveria (e sempre deve) ser referência de convívio entre diferenças, divergências, consensos e dissensos.

Pois no atual momento é possível defender um argumento que se relaciona tanto à violência da escola quanto à violência na escola.

Nos últimos dias o noticiário deu conta de uma sequência vertiginosa de fatos como estupro coletivo, aumento nos casos de feminicídio, espancamento de uma professora; enfim, muitos e horrendos casos.

Como cada um desses trágicos acontecimentos tem um contexto próprio, não foi suficientemente enfatizado que, para além da barbárie que estes episódios ajudaram a disseminar, têm outro aspecto em comum: a mulher foi o alvo em todos os momentos.

A situação concreta das mulheres é permanentemente degradada no âmbito das desigualdades sociais, pois comprovadamente sofrem mais os seus efeitos e se ressentem das discriminações de estruturas injustas porque estão inseridas como mulher.

Essa situação concreta também se degrada permanentemente pelo machismo que na esfera dos costumes e condutas produz falsas inferioridades e naturaliza papeis subordinados.

Isso tudo demonstra que os educadores devem assumir o protagonismo na defesa da escola como lugar necessariamente aberto às discussões sobre gênero.

Trata-se de um tema da escola e que deve ser trabalhado na escola.

A escola sempre se associa aos processos civilizatórios que demonstram que a violência não é natural, tampouco inevitável.

Portanto, as questões de gênero são da escola porque se ela se abstém de opinar a respeito passa a tomar parte na naturalização da indiferença. São também questões que devem ser tratadas na escola porque o currículo não é apenas um espaço técnico e instrumental de distribuição de informações.

O currículo diz respeito à construção de conhecimentos, mas também à vida em comum, à vida em partilha, à cidadania e à liberdade como valores universais.

As questões de gênero, complexas e necessárias, devem ser consideradas como temas essenciais que podem ser trabalhados conjuntamente no âmbito de várias disciplinas.

Não é casual que o neofascismo das propostas como as do “Escola sem partido” dedique especial atenção àquilo que chamam sem nenhum rigor de “ideologia de gênero”.

Pressentem que nas questões de gênero estão contidos aspectos essenciais da democracia que desprezam. Não há como atacar a liberdade sem simultaneamente desconsiderar a relevância das questões de gênero.

Quando Hannah Arendt escreveu sobre homens em tempos sombrios, para além de um texto seminal, produziu uma espécie de roteiro que deve ser recuperado por nós.

Educadores em tempos sombrios devem se pronunciar.

Devem indicar que inúmeras violências ocorrem porque do outro lado, na condição de alvo, está uma mulher, está uma menina, está uma mulher trans.

As questões de gênero também dizem respeito à sexualidade e também a muitos outros aspectos da complexa construção social da realidade.

É uma questão da escola. Tenhamos a determinação necessária para que educadores reivindiquem o protagonismo necessário nesse cenário tingido de sangue e sofrimento.

É uma questão para ser tratada permanentemente na escola. Tenhamos a clarividência necessária para perceber que está em andamento um processo de profunda desvalorização da docência. Isso começa nos discursos que insistem que o currículo não deve contar com a opinião do professor, para que não ocorra “contaminação ideológica”.

Foi a mesma Hannah Arendt quem escreveu que os homens demonstram que têm amor à humanidade quando decidem educar as crianças.

Dela podemos recolher a inspiração para pensar que educadores têm compromisso com a democracia quando reconhecem que a escola tem algo a fazer para resistir à naturalização da violência.

Reconhecer que as questões de gênero são da escola e que devem ser tratadas na escola pode ser um primeiro e decisivo passo contra a barbárie.

(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.