Por Gilberto Alvarez (*)
Na década de 1990, duas manifestações a respeito da educação pública no Estado de São Paulo chamaram atenção porque indicavam a mesma estratégia para resolver problemas crônicos no ensino médio das escolas mantidas pelo Estado.
Alguns professores de Universidades Públicas no interior do Estado de São Paulo sugeriram que as melhores escolas públicas fossem premiadas pelo desempenho e que os melhores alunos nas “piores escolas” fossem premiados com a transferência para as “escolas públicas de sucesso”.
Também no interior do Estado de São Paulo, mas no âmbito das escolas privadas, foi apresentada a proposta de premiar bons alunos das escolas públicas com bolsas nas escolas particulares.
A despeito das boas intenções vinculadas naquelas propostas, ambas despontavam com considerável déficit ético, à medida que indiretamente propunham “salvar os bons” dos prejuízos que a escola pública poderia causar “às suas carreiras”, como se dizia.
Alguns educadores abriram-se ao debate com os proponentes e explicaram que, na realidade, a suposta premiação de escolas públicas já existia, pois os números de então revelavam que algumas tinham excelente desempenho e estavam, ao mesmo tempo, usufruindo ótimas instalações, com corpo docente completo e estável, em local de fácil e amplo acesso e nas imediações de equipamentos culturais que permitiam atividades pedagógicas complementares de grande impacto na aprendizagem.
Aquelas consideradas “piores” coincidentemente estavam em locais desprovidos de estrutura urbana básica, com corpo docente incompleto e em permanente rotatividade e com índices sociais que demandavam outras medidas de recomposição do mínimo bem estar social.
A própria estrutura do governo do Estado de São Paulo indicava uma lógica que, ao termo, representava uma política que se traduzia no “melhor aos melhores” e, consequentemente, no “pior aos piores”.
Representava enorme esforço reagir àquela lógica explicando o óbvio. Ou seja, que as escolas que tinham alunos com bom desempenho não eram bem estruturadas porque os alunos correspondiam, mas sim que os alunos podiam corresponder porque usufruíam boas condições.
Eram esforços argumentativos quase vãos, pois nunca se perde o esforço de debater, mas predominava um entendimento de que as boas escolas eram boas porque eram preservadas, simplesmente isso. E que as escolas com baixo desempenho tinham dificuldades porque simplesmente não eram preservadas.
Naturalizava-se a distância social implicada nos resultados das avaliações com propostas que buscavam “separar os bons dentre os que prejudicam”. Era, no fundo, uma retórica de fundo moral que cada vez mais cumpria o papel de desqualificar a educação pública, porque pública, porque gratuita.
Alguns anos depois, ganhou notoriedade a obra do professor de Harvard Fernand Reimers, que fez impressionante levantamento sobre políticas educacionais na América de fala espanhola.
Produziu uma obra de referência, mas explicou as intenções políticas de seu estudo de fôlego com um exemplo.
Mostrou ilustrações de pobres descalços em lixões da Cidade do México e indicou que lutava para que todos tivessem educação e, assim, chegássemos a um mundo sem pobres descalços porque todos teriam recebido educação adequada.
Frase de efeito, suficiente para colher aplausos, mas com um problema de fundo.
Aquelas pessoas não eram pobres descalços porque não tinham ido à escola. Elas não tinham ido à escola porque eram pobres descalços.
Analisar desempenho somente com base em resultados de avaliações é um caminho seguro para a mistificação de alguns em detrimento dos que “não conseguem”. É caminho também para receitas simples, mas que distorcem a realidade.
A mídia registra que atualmente 30% das escolas públicas do Estado de São Paulo estão abaixo da média do ENEM.
São muitos os fatores que devem ser levados em consideração para entender essa questão, cujo resultado em termos gerais coloca o Estado mais rico do país atrás de outros cinco que, com menos recursos, têm resultados mais expressivos.
O Estado de São Paulo continua tendo escolas muito bem estruturadas que respondem com números altamente positivos aos processos de avaliação em larga escala e exames da envergadura do ENEM.
Mas se mantém e com tendência a crescer o número de escolas que padecem os efeitos de políticas educacionais que consideram que os déficits de infraestrutura e de estabilidade docente são “apenas” questões de gestão, de gerenciamento.
Não é casual que estejamos vivendo mais uma vez um momento de forte aposta nas mudanças curriculares, com expectativa, inclusive, que a capital de São Paulo venha a divulgar nos próximos dias “sua” base curricular.
É que há 20 anos estão sendo concatenadas ações para que os processos de ensino público possam ser feitos “a despeito do professor”.
Este, considerado uma “peça de baixa eficiência” é pensado como receptor de estratégias didáticas, aplicáveis com materiais feitos à sua revelia, para que os planos de ensino sejam realizados independentemente de suas (im)possibilidades.
Não é casual que autoridades educacionais das esferas municipal, estadual e federal se manifestem com palavras muito parecidas, exaltando o “bom professor” que fará os materiais renderem o máximo.
São políticas que promovem tal esvaziamento da docência que não cessam de expor suas táticas como modelos de “cura” da educação pública.
Se é assim, é compreensível que elogiem o “bom professor” com sendo aquele que “não atrapalha” o bom material.
Os números da educação pública do Estado de São Paulo devem ser analisados levando em consideração essa complexidade de fatores.
Porém, no contexto em que estamos, não surpreenderá a volta de propostas de premiação para as escolas com bom desempenho no ENEM, bem como a proposta de utilização dos números desse exame para “salvar alguns” a despeito de suas escolas.
Como caminhamos aceleradamente para trás, o que tinha forte déficit ético na década de 1990 combinará com o cenário de degenerescência que estamos vivendo neste momento.
(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.