Desmontar a nossa herança patriarcal

Por Gilberto Giusepone (*)
Na década de 1980, o professor Ilmar Rohloff de Mattos analisou a formação do Estado imperial brasileiro.
Com singular brilhantismo, ele detalhou a dinâmica de formação da classe senhorial brasileira – um processo cuja essência estava na delimitação inquestionável da distância entre “os de cima” e “os de baixo”, deixando claro “o quê” distinguia um homem poderoso de um homem comum e, principalmente, um senhor de um escravo.
Naquilo que chamou de Tempo Saquarema, emergiam grandes proprietários rurais e se estabelecia uma espécie de solidariedade horizontal entre poderosos que cuidavam de elaborar as leis que, em contrapartida, reelaboravam privilégios dos chamados “homens que mandam”.
Esse processo que organizou a vida política de um país escravocrata tinha um componente estratégico, necessário para que a aliança entre poder e dinheiro não fosse abalada. Esse componente dizia respeito às chamadas “alianças matrimoniais”.
Para traduzir isso em poucas palavras, meninas já nasciam prometidas em casamento. Indiscutível, o futuro de cada uma dependia do que os homens de sua família quisessem em termos políticos e, principalmente, patrimoniais.
Esse exemplo de violência contra a mulher é importante porque tipifica claramente um modo de usurpar a liberdade de alguém “por ser mulher”.
Mesmo com fartura e posses, mulheres das classes senhoriais podiam ser “dadas”, “trocadas”, prometidas e comparadas numa relação em que se contabilizava o que se ganhava com “a troca”.
Esse é um entre tantos retratos pavorosos do Brasil escravocrata. É necessário mencioná-lo porque o país republicano que supostamente superaria esse estado de barbárie, uma barbárie com punhos de renda, manteve não somente um “pelourinho profundo”, como dizia Darcy Ribeiro, mas também cristalizou uma das sociedades mais machistas, preconceituosas e violentas contra a mulher.
Se o exemplo retirado da obra magistral do professor Mattos coloca em evidência a mulher rica, o que falar da mulher pobre? O que contar da mulher que, por exemplo, viu a vida da perspectiva de um quarto de despejo, como foi o caso da escritora Carolina de Jesus, mulher, negra e pobre?
O Brasil republicano conservou dívidas sociais expressivas em relação à mulher, muitas das quais não foram pagas até agora.
Florestan Fernandes, na década de 1960, discutiu a integração do negro na sociedade de classes.
Demonstrou como o negro acumulava desvantagens. Era acachapado pela estrutura necessariamente desigual de qualquer sociedade de classes e era duplamente oprimido por ser negro, considerando as distâncias estabelecidas não somente nos marcos dos “lugares econômicos”, mas também com a marcação cotidiana de quem não deve ser confundido com quem.
A mulher, por sua vez, nessa sociedade em que se desvantagens se somam, está permanentemente num lugar social em que todas as cruezas e crueldades podem se encontrar. São muitos os estudos que demonstram que ser mulher, negra e pobre é a intersecção mais desfavorável da sociedade brasileira.
A condição feminina no Brasil ao mesmo tempo em que gradativamente se fortaleceu com lutas, movimentos e reivindicações específicas, também mostrou continuamente que ser mulher neste país é ser, sempre, um alvo preferencial de ações misóginas, machistas e, fundamentalmente, violentas.
A violência contra a mulher parece vir de todos os lados. No Brasil, essa violência tem raízes tão profundas que muitas vezes é tratada como se fosse “natural”.
Em 7 de agosto de 2006, as lutas das mulheres resultaram na promulgação da Lei Maria da Penha, lei essa que homenageia uma mulher quase massacrada por um homem simplesmente por ser “sua” mulher.
A maioria das mulheres faz jus ao corajoso slogan “lute como uma menina!”, porque a herança histórica acumulada num país cujo útero foi a escravidão é continuamente enfrentada justamente com a luta e bravura de mulheres.
A lei que pune especificamente o feminicídio, promulgada em 15 de março de 2015, é mais um exemplo de reconhecimento de horrores que são praticados contra a mulher.
Essas leis resultam de mobilizações que têm exigido um mundo sem assédios de qualquer espécie, sem discriminações de gênero. E essas mobilizações não são recentes.
Na Assembleia Nacional Constituinte de 1988 muitas mobilizações levaram ao plenário contestações que apresentavam números e exemplos concretos. Com aqueles números e exemplos se comprovava que mulheres exercendo a mesma função que homens ganhavam menos.
Essa é uma situação que ainda persiste. E persiste não somente nas disparidades econômicas, mas também na abertura de espaços institucionais e na falta de isonomia de oportunidades.
Desde o tempo em que mulheres eram prometidas e dadas em casamento, ao tempo em que candidatos afirmam que mulheres devem “ganhar menos porque engravidam”, temos um cenário cujas cenas têm sempre cores sombrias e, muitas vezes, a cor do sangue.
Mas as mulheres não foram e não são passivas expectadoras de todas as iniquidades acumuladas.
Permanentemente romperam, avançaram, quebraram barreiras, impuseram limites e hoje, a despeito de estarmos mais uma vez mergulhados em tempos sombrios, cada vez mais conseguem ecoar com voz potente que a violência contra a mulher, como qualquer violência, não tem desculpa.
A visibilidade que se pretende com a campanha “agosto lilás”, que comemora os 12 anos da Lei Maria da Penha, diz respeito à obrigação de educar a sociedade brasileira no combate a essa chaga.
A mesma sociedade que responsabiliza a mulher em casos de estupro considera que discutir questões de gênero põe em risco a família e os “bons costumes”.
A obra de Ilmar Mattos, citada ao início, mostra tal diminuição da mulher no século 19 que se institucionalizava a prática de decidir por elas.
E no século 20? E no século 21?
Silenciamentos e invizibilidades estão presentes ainda nos dias de hoje e com amargas consequências.
Mas há uma diferença fundamental. As mulheres estão lutando organizadamente como nunca. Os coletivos femininos não se calam e não se calarão jamais.
O Brasil não teria construído os parâmetros democráticos da educação infantil, por exemplo, sem as lutas femininas. Outros exemplos igualmente ricos poderiam ser citados.
Mas o que é importante salientar no momento em que agitamos as bandeiras de um agosto lilás, ou seja, as bandeiras de um tempo de conscientização de que somos e não devemos ser violentos contra as mulheres, é que os limites estão postos.
O “não” que as mulheres estão esbravejando, o “basta” que estão exigindo, tornaram-se palavras de ordem.
Educadores devem trazer para suas pautas essa questão que não diz respeito somente às particularidades de uma causa. Poucas questões têm valor tão claramente universal como essa.
(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.