“O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito” (Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do Esclarecimento)
*Gilberto Alvarez Giusepone Jr.
Nas últimas duas semanas dois fatos relacionados à educação foram noticiados e, até o presente momento, não parece que a relação entre ambos tenha sido objeto de análise específica.
Ou seja, os fatos foram noticiados como se fizessem parte de lógicas distintas, um na esfera federal, outro no âmbito da cidade de São Paulo.
Na esfera federal, o Ministério da Educação anunciou a exclusão de entidades como ANPED, CEDES e CNTE do Fórum Nacional de Educação.
Isso significa que os mais representativos atores, com ampla legitimidade e décadas de serviços prestados à causa da educação pública, foram alijados do debate com a Portaria 577 do MEC que redefiniu a composição do Fórum Nacional de Educação (FNE).
Para além disso, de forma inédita, o ministro da Educação assume a responsabilidade exclusiva de decidir quais atores, coletivos e individuais, passam a fazer parte do Fórum, evocando uma autoridade ministerial que se pronuncia sem nenhuma legitimidade. Isso porque as entidades excluídas constituem seus representantes valendo-se de amplos processos de consulta e diálogo entre pares, garantindo que a presença de representantes seja sempre expressão da vontade de amplos setores do universo educacional brasileiro.
Quase que simultaneamente a Prefeitura municipal de São Paulo anunciou sua estratégia para ampliar vagas valendo-se do fechamento de espaços educacionais como brinquedotecas e bibliotecas.
A palavra chave para desvelar o sentido de ambas as ações é “descontaminação”.
O Ministério da Educação tem se esforçado para alijar os segmentos que representam os principais coletivos educacionais do país, e esse esforço se dá com base na premissa de que o arsenal crítico que tem sido utilizado contra as ações governamentais advém de forças “corporativistas” baseado em argumentos “arcaicos”.
A ação é de um autoritarismo sem precedentes.
Inicialmente o ministério da educação confunde a ação política organizada, articulada com votos e representações indicadas com critérios acadêmicos, com aquilo que chama apressadamente de corporativismo.
É plausível a hipótese de que educadores e pesquisadores da educação não devam se expressar como atores coletivos? É aceitável a indicação de que cada educador deve participar do debate educacional “sem se deixar doutrinar”?
Os atores coletivos que trabalham conjuntamente nessas entidades e associações desempenham suas ações conjuntas e defendem as mesmas teses porque foram, antes, capturados por um corporativismo pleno de sedução ideológica?
O simplismo da argumentação está escorado nas preferências ministeriais – afinal de contas, o ministro da Educação recebeu em seu gabinete representantes do Movimento Brasil Livre (MBL) e do “Escola sem partido” sem sequer esboçar abertura de interlocução com os segmentos educacionais mais representativos.
Por isso, o que o Ministério classifica como corporativista e arcaico é aquilo que tais movimentos com pendor fascista grosseiramente classificam de “esquerdismo”, ou seja, tais entidades com seus respectivos repertórios de ação política passaram a ser descartados porque são classificados como “esquerda arcaica”, com expressões do “não moderno”.
Os livros de história deverão se referir a esse momento com palavras de pesar, com cinzas e indignações, porque o país assiste à perda impressionante de escrúpulos. As justificativas mais rasas têm sido suficientes para que tais atores políticos esvaziem mais e mais a cada dia a combalida e aviltada democracia brasileira.
Sem a “contaminação” política desses segmentos altamente representativos, o Ministério se encontra à vontade para tornar a educação brasileira o paraíso rentável das fundações.
Comparemos, agora, essa medida com a decisão da Prefeitura de São Paulo.
O fechamento de brinquedotecas, bibliotecas e espaços de lazer na cidade de São Paulo não é simplesmente um recurso estratégico para abrir vagas.
É um recurso deliberado de precarização; precarização essa baseada naquilo que os gestores atuais pensam a respeito do aluno que acede à educação pública na cidade.
Tratados como usuários de um “serviço”, são confrontados com os custos desse serviço considerado incompatível com as aspirações privatizantes do gestor, que não cessa de reduzir a esfera pública à condição de empreendimento.
Tanto na esfera federal quanto na municipal ambas as ações expressam a certeza desses gestores de que sabem o que “o povo quer” e, pior, que falam em seu nome. Por isso, não têm pruridos para afirmar que pais e mães entendem que as ações governamentais são as únicas possíveis, pois segundo tais pessoas, “o povo não quer ideologia”, quer educação.
Não fosse pela inconsistência de argumentos tão toscos, tais ações poderiam parecer simplesmente ajustes administrativos e operacionais.
Mas não se pode perder de vista que essas ações têm um fundo comum. Têm um mesmo vetor e se direcionam ao mesmo horizonte político.
São expressões da pauperização da esfera pública articulada com os motes do “Escola sem partido”, que são derivados da ideia de descontaminação da pauta política com base na estratégia da “ação necessária”, considerada a “mais moderna”.
Ambas as ações estão radicadas na estratégia de estigmatizar as críticas com as acusações de populismo e inconsequência fiscal.
Na verdade, o que está em curso é a desfiguração da esfera pública e, dentro dela, da educação tal como arquitetada como direito na Constituição de 1988.
O mote da eficiência “isenta de ideologia” é o canto fúnebre da democracia em nome de uma razão radicalmente neoliberal.
O ministério da educação explicitamente afirmou que quer, com essas medidas, evitar que argumentos políticos partidários interfiram naquilo que é natureza “técnica e pedagógica”.
Toda vez que a educação foi reduzida à técnica e as questões pedagógicas ao orçamento,os resultados foram trágicos.
Bom, mas, afinal tudo isso é bastante compatível com a marcha acelerada que estamos fazendo em direção ao século 19. A cidadania está cada vez mais sitiada.
* Gilberto Alvarez Giusepone Jr. é presidente da Fundação PoliSaber e diretor executivo do Cursinho da Poli