Por Gilberto Alvarez (*)
A luta pela inclusão de pessoas com deficiência percorreu um longo caminho no Brasil e celebra novas conquistas. A Lei Nº 13.409/2016 ampliou o escopo da Lei de Cotas e tornou as Universidades Federais instituições de ensino superior que devem, inquestionavelmente, incluir entre os contemplados nas políticas de ação afirmativa as pessoas com deficiências.
Trata-se de uma grande conquista, que já possibilitou o acesso de aproximadamente 1.600 pessoas com deficiências aos muitos campi das Universidades Federais. É também um grande desafio à medida que a garantia da efetivação desse direito exigirá enfrentar questões estruturais.
O universo das pessoas com deficiências deu origem a um dos mais densos movimentos políticos do final do século 20.
Especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, a partir do final da década de 1980, vários coletivos de pessoas com deficiências ganharam as ruas e se posicionaram como grupos de pressão.
Dirigiam-se às instâncias de legislação e implementação de direitos, exigindo salvaguardas e reorganização física e logística das cidades, mas, principalmente, traziam à baila uma nova concepção de deficiência, elaborada com parâmetros sociológicos e antropológicos que ficou conhecida como “modelo social de deficiência”.
Aqueles militantes se insurgiam contra a redução das singularidades corporais, especialmente as deficiências, aos limites orgânicos e, principalmente, inseriam as pessoas com deficiências no conjunto das minorias oprimidas exigindo que a análise a respeito compusesse um perfil em que as perspectivas de classe, raça, gênero, idade e deficiência estivessem entrelaçadas quando se fossem explicitar as razões pelas quais determinadas pessoas estão aptas ou não à realização de determinada tarefa.
De modo muito consistente esses movimentos, essenciais para se entender a história das ações afirmativas, passaram a argumentar que a vida social, especialmente a vida em sociedades produtivistas exacerbadas, produzem estruturas, tempos, racionalidades que se tornam, ao final, estruturas “deficientizadoras”, ou seja, produtoras de modos de fazer, modos de usar e modos de compreender que pressupõem um “corpo universal”, “normal” diante do qual toda diferença corre o risco de ser reduzida à condição de anomalia em relação a esse modelo “inescapável”.
É desse processo também a delimitação política da identidade pessoal do deficiente. Em outras palavras, aquelas pessoas reivindicaram que fossem denominadas pessoas com deficiências. Faziam isso para evitar, em primeiro lugar, o eufemismo da expressão “pessoas com necessidades especiais”, afirmando categoricamente que tinham uma característica a ser respeitada, não necessidades especiais que, no fundo, todos têm. Entendiam também que rejeitar esse eufemismo equivalia à rejeição que o movimento negro teve em relação à expressão “pessoas de cor”, que era um modo de evitar o uso da palavra negro, como se esse uso identificasse uma desvantagem.
Na sequência, a construção dessa identidade voltou-se contra a expressão “pessoas portadoras de deficiências” explicitando que não portavam uma situação, como se fosse possível guardá-la em algum lugar, mas sim que eram, que são, pessoas com deficiências e que a deficiência em si não está radicada apenas no corpo com suas lesões e impedimentos. Mas está na própria dinâmica da sociedade que “deficientiza” os corpos reduzindo-os às dimensões orgânicas de suas existências.
A presença de pessoas com deficiências indica também o tom autoritário que permeia nossas relações sociais e até nossas práticas políticas.
Isso ocorre porque raramente reconhecemos nas pessoas com deficiências sujeitos formuladores dos próprios direitos e dos próprios espaços. São vistos, quando muito, como beneficiários de nossas ações quando empreendemos gestos de ampliação do acesso. Mas como protagonistas de fato, nem as mais festejadas leis ainda reconheceram.
São permanentemente tomados como “vítimas de tragédias pessoais” e tratados como se merecessem “tolerância” e “generosidade” para adaptá-los o máximo possível às atividades programadas para corpos “normais”.
Muito ao contrário disso, a militância de pessoas com deficiência aponta, com grande densidade argumentativa, que nossa sociedade é implacável com as diferenças, marcando-as com o inventário de suas insuficiências.
Esse é um processo também beneficiado pela fortuna crítica de Pierre Bourdieu, que estabeleceu parâmetros de análise com os quais conseguimos diferenciar acessibilidade de inclusão.
Acessibilidade diz respeito aos processos de democratização, de ampliação de acesso e eliminação de barreiras físicas, jurídicas, econômicas e sociais. Porém, ainda não é inclusão.
Inclusão diz respeito à mudança nas estruturas e no modo de fazer para evitar que a pessoa que viveu a bem sucedida experiência de acesso se torne um “excluído no interior”, ou seja, alguém que “está dentro, mas permanece fora”.
As Universidades Federais terão que adaptar estruturas físicas, arquitetônicas e logísticas para responder às mudanças.
Terão que adquirir equipamentos de tecnologia assistiva e ampliar significativamente a presença da língua de sinais.
Terão que negociar com instâncias governamentais o apoio em questões de deslocamento e, principalmente, política de permanência.
Tudo isso diz respeito às conquistas de acessibilidade. A inclusão, de fato, ocorrerá com as mudanças que enfrentem os efeitos deficientizadores de uma sociedade estruturada no eficientismo e na redução das pessoas às dimensões orgânicas e produtivas de suas existências. A luta está em marcha.
Num momento com tantas sombras, esse fato traz um pouco de luminosidade para nossos passos.
(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.