Por Gilberto Alvarez (*)
Recentemente, ganhou visibilidade a obra do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, há muito tempo radicado em Berlim, que perguntou se essa nossa sociedade não estaria se transformando na “sociedade do cansaço”.
Para caracterizar seu argumento, ele demonstrou que temos uma “nova paisagem patológica”, com novas personagens: os transtornados da atenção e da hiperatividade, os de personalidade limítrofe, os que estão prestes a explodir (burnout) e assim por diante.
O autor demonstra com grande lucidez que essas personagens são criações de um mundo à beira da barbárie e que a força recente dos “repertórios neuronais” é sintoma de um tempo que inventou uma receita perversa.
Qual receita?
Trata-se do processo que transfere a resolução de todos os problemas para o campo do mérito e do esforço individual.
Ou seja, adentramos em um tempo no qual está presente a imagem do homem que tudo pode superar por meio da vontade, num excesso de positividade que produz um sujeito histórico que é desafiado a consumar-se, ou seja, estar disponível até acabar.
Nessa “sociedade do cansaço” os problemas sociais são tratados como se não existissem de fato, mas resultassem simplesmente da falta de empreendedorismo pessoal daqueles que, sem o mérito da superação, da autossuperação, sempre se “tornam fardos”, como se quisessem usufruir a “produtividade do outro”.
Essa “sociedade do cansaço” é o ponto de chegada, o ponto final, de um esgarçado contrato social que passou a proclamar que direitos, garantias e proteções sociais são fardos que inibem a produtividade.
Temos, assim, as personagens que não precisam parar. Pior do que isso, temos as personagens que não podem nunca mais parar.
Essa reflexão faz parte de um debate internacional sobre a “uberização” da vida, ou seja, a reconfiguração do mundo do trabalho em direção à oferta de serviços que são realizados e, imediatamente, as partes desconectadas, ficando o prestador de serviço responsável por procurar (sem nunca encontrar) o tempo livre da interrupção, do descanso, do estudo.
Trata-se de uma sociedade que busca, por meio de aplicativos, não mais pessoas, mas serviços. Uma sociedade que adquire um padrão argumentativo de impressionante violência: empreenda que o problema se resolve.
Para usar um jargão das redes sociais, poderíamos acrescentar: empreenda que o problema se resolve. Só que não!
A absurda situação dos chamados imigrantes ilegais nos Estados Unidos provocou grande indignação em todo o mundo.
Mais uma vez, metáforas da infecção foram produzidas para justificar até a separação entre pais e crianças, numa das mais aberrantes afrontas aos direitos humanos e, assim, evitar a entrada de pessoas descritas como “fardos”.
Não são poucas as autoridades que se apresentam nesses contextos afirmando que concordam com os direitos humanos, mas (sempre o “mas”) “querem indicações sobre qual parte do orçamento absorverá tais custos (!)”.
Inúmeras vezes o estrangeiro tornou-se a peça chave de retóricas fascistas e muitas vezes o retrato da ameaça que se aproxima é produzido por autores os mais surpreendentes.
O argumento de Byung-Chul Han é importante porque sinaliza um erro de graves consequências que nós educadores estamos cometendo e que, ao final, contribui decisivamente com esse quadro de horrores.
A imagem do pobre como fardo é permanentemente refeita e reforçada com os repertórios da meritocracia.
As narrativas do homem que não triunfa porque não se esforça o suficiente para “ganhar autonomia” e, por isso, passa a precisar da “reparação”, da “compensação” desqualifica o tempo todo quaisquer ações voltadas a proteger populações vilipendiadas.
“Enjaular” estrangeiros pobres, que são os que mais facilmente podem ser descritos com os repertórios jurídicos da ilegalidade, provoca repúdio quando gera imagens fortes, tais como crianças enjauladas sem a presença dos pais, ou a já esquecida imagem do corpo da criança morta na praia do sul da Europa, que gerou uma icônica fotografia, mas com prazo de validade pequeníssimo em termos de mobilização em prol dos direitos humanos de refugiados.
Ou seja, para além das comoções, esses cenários têm em comum pessoas que reeditam a imagem dos famélicos ameaçadores que têm a intenção de usufruir o que não lhes pertence.
São descritos como aproveitadores de direitos sociais que, por sua vez, são criticados por estimularem esse tipo de aproximação e, assim, inibirem a “resolução dos problemas” com a acomodação. É uma negação perversa da ideia de “fardo do homem branco” do escritor britânico Rudyard Kipling, que elogiava a “missão civilizadora” dos países europeus na África.
Nada será resolvido em relação às crianças enjauladas ou mortas em praias se os seus pais estiverem sob a guarda de nossos mais repulsivos preconceitos e permanecerem como “espectro que ronda” nossos bolsos.
Educadores que somos, temos a obrigação de acrescentar contrapontos críticos aos argumentos que proclamam o triunfo do mérito e sonham uma meritocracia na qual a miséria social seja finalmente punida e não socorrida.
Essa punição é, em primeiro plano, pedagógica. Significa produzir um excesso de positividade, como afirma Byung-Chul Han, ou seja, pedagogicamente afirmar: não reclame, trabalhe. Se não há trabalho, mude de atividade; se não há atividade, vá buscar outra.
Mas esse incentivo à busca rapidamente se revela uma falsificação da realidade, como diria Marx, porque dependendo de quem busca o que se encontra é a jaula.
A “sociedade do cansaço” é uma sociedade à beira da barbárie. A educação ainda pode exercer o papel de alerta, de contraponto, de guardiã de valores que não podem ser esquecidos.
Ou, em sentido contrário, pode participar disso tudo insistindo que o que falta a cada um é aprender a competir.
Nesse caso, teremos esquecido que diante do abismo o passo seguinte é um passo para trás e que a aposta numa sociedade que se consuma é a aposta ingênua de que os enjaulados serão somente “aqueles outros” que insistem em se aproximar.
(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.