Tâmara Lis Reis Umbelino – Doutora em Sociologia, jornalista e professora dos cursos de Comunicação da Estácio
Olhando para o campo de concentração da janela do navio negreiro. Ainda é assim que muita gente se coloca para falar de discriminação, reparação histórica e injustiças sociais. Essa imagem me veio à cabeça ao assistir à transmissão de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio e acompanhar o narrador emocionado falando sobre a relação entre Japão e China por conta das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial.
Na tentativa de fazer com que os telespectadores entendessem a gravidade das violências cometidas na batalha entre os dois países, o locutor recorre, pasmem, ao holocausto nazista. Como se não tivéssemos exemplos suficientes dentro de casa.
Eu me pego pensando e resmungando em voz alta: qual a razão de um brasileiro, morador do último país do Ocidente a abolir a escravidão e que, ainda se utilizando do racismo estrutural, mantém grande parte da população em situação de extrema miséria e adoecimento emocional, ir buscar exemplos de desumanidade em campos de concentração?
Não é preciso sair de casa. Basta entrar no quarto relegado à empregada doméstica ou, como definiu a historiadora, rapper e ex-empregada doméstica Joyce da Silva Fernandes (Preta Rara), “a senzala moderna”. Lá, entre caixas vazias de eletrodomésticos, paredes frias de azulejos e a minúscula janela que não é possível abrir, reside um exemplo mais próximo de cada um de nós.
Para citar a importância das mulheres nos Jogos, o narrador e os comentaristas, com as vozes embargadas, lamentam, consternados, e com toda a razão, a história das “mulheres de conforto” trazidas da Coreia do Sul, China e Filipinas para se prostituírem, de forma involuntária, em bordéis para militares japoneses durante a guerra. Perderam a oportunidade de destacar também o histórico de horrores vivenciado pelas escravizadas africanas no Brasil, como documentou o escritor Laurentino Gomes, em “Escravidão – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares”, submetidas a estupros diários.
O locutor decreta: “Essa situação entre Japão e Coreia não tem solução porque é algo que não é possível perdoar”. Mas me imagino o que ouviria uma mulher negra durante essa transmissão dizendo que é impossível perdoar o que foi feito a cada um de nós durante o período escravagista no Brasil. Que é impensável relevar que foram tantos os milhares de escravizados doentes jogados vivos ao mar que os Navios Negreiros foram os responsáveis por mudar a rota dos tubarões no Atlântico.
Até quando teremos o cinismo de apontar nos outros as mazelas que não reconhecemos em nós? Até quando teremos a covardia de olhar para nossas próprias feridas e admitir a urgência em cuidar delas?
Temos ouvido que essa é uma Olimpíada diferente, mais inclusiva. Acompanhamos os bastidores pelo olhar de Douglas Sousa, o primeiro jogador assumidamente homossexual, que ganhou milhões de seguidores quase instantaneamente e vem sendo aprovado por grande parte dos internautas, vimos Simone Biles abrir mão do posto de favorita na competição para cuidar de sua saúde mental (ainda tabu para grande parte das pessoas) e vibramos com Rebeca Andrade, ao som de Baile de Favela, se consagrar como a primeira brasileira na ginástica artística feminina a subir ao pódio olímpico. É muito, sem dúvida!
Mas ainda falta! Falta termos coragem de olhar para dentro. Reconhecer o Navio Negreiro no qual ainda vivemos e nossa parcela de responsabilidade nas desigualdades que nos cercam. Quem sabe assim, na próxima vez que tivermos a necessidade de explicar para alguém o cruel processo de escravização, extermínio, exclusão, racismos, preconceitos, estupros, fome e adoecimento mental tenhamos a coragem de nos usar como um exemplo, a não ser seguido.