De volta às trevas

Por Gilberto Alvarez (*)

Cresce o número de educadores que reconhecem nas ações recentes do Ministério da Educação procedimentos que descaracterizam a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e promovem uma adaptação de sua estrutura aos pressupostos mais conservadores e autoritários de nossa sociedade.

A BNCC está se tornando uma “versão amigável” aos preconceituosos e intolerantes, atores políticos ultraconservadores que não cessam de cobrar o preço do apoio que oferecem ao governo.

Da versão da BNCC que está prestes a ser aprovada foi retirada qualquer menção ao combate à discriminação de gênero e as muitas questões derivadas do tema nem sequer indiretamente serão tratadas.

Supondo que a realidade é o espelho fiel de seus delírios disciplinadores, os que engendraram tais cortes repousam na expectativa de que tais questões não mais farão parte da vida escolar brasileira.

Estão enganados, pois o cotidiano se reinventa e, muitas vezes, se reapresenta no diapasão de lutas, especialmente aquelas que são decorrentes dos segmentos que mais sofrem o peso das desigualdades e do desrespeito às diferenças e diversidades.

Mas é lamentável que isso esteja ocorrendo porque tais questões terão que ocupar espaços desautorizados, falar nas entrelinhas, gritar dos bastidores.

Se isso é capital político das resistências, é também esvaziamento de conquistas democráticas que já dávamos equivocadamente como consolidadas.

E o que faz o governo para justificar a retirada das questões de gênero da BNCC?

Pede tranquilidade aos educadores, assegurando que tais questões serão tratadas no âmbito do ensino religioso!

É difícil imaginar proposta mais escancaradamente moldada por pressões das bancadas que exigem fiel atenção do governo, ou melhor, que exigem um governo com atenção aos fieis.

O papel da escola está em disputa. Os sonhos de aniquilação, desmonte, sucateamento e privatização da educação brasileira se materializam nesses processos que projetam a imagem da escola “perigosa quando pensa e faz pensar”.

A escola era (e ainda é) um espaço chamado a garantir não somente a integridade intelectual, física, moral e psicológica das pessoas (todas elas) que estão todos os dias em seus domínios. É chamada também a ser um espaço exemplar de referência no que tange o convívio entre diferenças, divergências, consensos e dissensos.

Retirar referências a gênero é uma brutalidade. Considerar tais referências patrimônio temático e curricular do ensino religioso é mais do que uma aberração, é uma declaração de guerra à democracia.

E não são apenas as questões que tocam o tema da sexualidade que passam a ser sonegadas. A situação concreta das mulheres, tema essencial nos debates sobre gênero, situação essa permanentemente

degradada no âmbito das desigualdades sociais, é deslocada do trabalho docente para o púlpito.

Na esfera dos costumes tem predominado um machismo que deveria ter na escola seu contraponto.

Em outras palavras, a escola deveria ser uma instituição tão incompatível com os desrespeitos e estereotipagens de gênero que essas questões sequer seriam identificadas com um “lugar” no currículo, exatamente por incidir transversalmente sobre todos os conteúdos.

Mas a escola projetada na BNCC não é contraponto a nenhum dos danos que o machismo e o preconceito permanentemente causam. Ao contrário, para os idealizadores da versão que está chegando, esse documento é o ponto culminante de um projeto de esvaziamento da educação pública.

Muitos educadores têm assumido o protagonismo na defesa da escola como lugar necessariamente aberto às discussões sobre gênero. Estão, porém, precisando urgentemente de aliados, de reforço político para operar uma resistência incansável aos efeitos de um contexto que conseguiu radicalizar os efeitos deletérios do neoliberalismo solapando o Estado de Direito e naturalizando posições protofascistas que aguardam o fim da educação pública no Brasil.

Gênero é um tema da escola e que deve ser trabalhado na escola. Escola é um pilar da democracia e que só é plena na democracia.

O currículo diz respeito à construção de conhecimentos, mas também à construção da vida em comum, da vida partilhada, da convivência com valores que são universais quando não produzem “o outro” como diferente a ser excluído.

Gênero é um tema que ensina a perceber que exclusões não são naturais, tampouco necessárias, muitos menos inevitáveis.

(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.