Desigualdade produz ricos e avilta a educação

Por Gilberto Alvarez (*)

No início do século 20, o sergipano Manoel Bomfim enfatizava a importância de se levar em consideração as condições concretas em que estavam todas as pessoas, condições essas que, no seu entender, interditavam o uso de comparações de desempenho entre estudantes e trabalhadores.
Intelectual de grande envergadura, que havia atuado no Pedagogium do Rio de Janeiro, Bomfim foi protagonista de um processo analítico corajoso.
Como antes de atuar no âmbito da educação havia exercido a profissão de médico teve a oportunidade de frequentar, na França, laboratórios de pesquisa que se ocupavam com testes para verificar padrões de desempenho, incluindo testes de inteligência elaborados por Alfred Binet.
Foi corajoso seu processo porque ao voltar da Europa iniciou a divulgação daqueles testes e instrumentos de avaliação, mas quando perguntou a si mesmo se todos tinham as mesmas condições, se usufruíam das mesmas instituições, se estavam “em pé de igualdade”, concluiu ser aberrante valorizar testes de desempenho. Passou a combatê-los e esse reconhecimento foi essencial para muitos debates educacionais que, no transcorrer do século 20, se esforçaram para dar visibilidade às distâncias concretas em que vivem as pessoas, para o que é necessário reconhecer desigualdades sociais.
O ensino médio brasileiro é objeto de constante avaliação. Tornou-se também um tema midiático à medida que suas insuficiências e dificuldades estruturais passaram a ser apontadas como entraves ao desenvolvimento nacional.
Não foram poucos os protagonistas políticos e empresariais que apresentaram contundentes manifestações a respeito do quanto o país carecia de “pessoas preparadas” para os desafios inerentes ao crescimento econômico.
O professor Fernando Casadey publicou no final da década de 1990 importante estudo no qual analisou e comparou a expansão industrial de São Paulo nos anos 1950/1960 e a oferta de ensino médio, à época denominado secundário.
Concluiu que a industrialização ocorrida, pujante e acumuladora de riqueza, deu-se de modo “desescolarizado”, ou seja, o professor demonstrou com grande fartura e qualidade de informações estatísticas, que os discursos que relacionavam o desenvolvimento insuficiente de nossas atividades econômicas ao despreparo da população não se sustentava.
Um forte crescimento tinha ocorrido e não se deu “apesar” do despreparo educacional, mas, sobretudo, às custas dele.
O ensino médio atualmente oferecido no Brasil é, constitucionalmente, obrigação precípua dos Estados e o que se constata é que a oferta não somente tem desníveis quantitativos e qualitativos como concretamente deixou e deixa de abranger parcela significativa da população.
O levantamento feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), recentemente divulgado no Brasil e no exterior, demonstrou que no Brasil 52% da população entre 25 e 64 anos não teve, nem tem acesso ao ensino médio.
Essa informação é bastante importante para indicar a diferença entre produzir riquezas e produzir ricos.
O país produziu e produz índices impressionantes de enriquecimento individual, que se processam a despeito dos déficits de escolarização, mesmo que os discursos apontem em sentido contrário.
O enriquecimento social ocorre justamente quando as distâncias e desigualdades, incluindo as educacionais, são diminuídas ou eliminadas.
Têm-se um histórico de pronunciamentos que afirmam que um país com mais educação tem menos desigualdades, mas, na realidade, é exatamente o contrário. Um país com menos desigualdades tem mais educação.
A contaminação dos debates educacionais pelas várias expressões de neoliberalismo acentuou de diversos modos a compreensão de que as pessoas têm vida precária porque têm estudo insuficiente, mas o que devemos compreender é que em sentido exatamente oposto essas pessoas têm pouco estudo porque têm vida precária.
As desigualdades regionais do Brasil contêm aspectos importantes para que se compreenda a dinâmica insuficiente na oferta de ensino médio. Mas é, também, um critério de análise que isoladamente não consegue desvelar questões estruturais.
Isso porque temos estados economicamente pujantes e, mesmo assim, suas redes de ensino médio têm números insuficientes de professores, déficits de infraestrutura e resultados questionáveis. São Paulo é um exemplo singular nesse sentido.
O ensino médio é um direito e, portanto, os números revelados pela OCDE indicam severo desrespeito à cidadania.
Reverter a situação exigirá mais do que reformas curriculares e talvez isso implique assumir a necessidade de pelo menos colocar em debate a repartição federativa relacionada ao tema.
Mas é certo que essa situação não será revertida se for anunciada como “entrave ao enriquecimento do país”. A situação será outra se a redução das desigualdades sociais for assumida como princípio de refundação do país.
É no universo da estratificação social que temos que se pode compreender o ensino médio que não temos.

(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.