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Comunidades indígenas apostam no turismo como alternativa para geração de renda

Roteiros respeitam a cultura, meio ambiente e o protagonismo dos habitantes locais

ÉLISSAN PAULA RODRIGUES

Especial para o EducaRR

Uma das tendências mais atuais de amantes de viagens é a busca por destinos onde as comunidades mantêm preservadas suas respectivas culturas. A ideia é aliar a oportunidade de conhecer um novo lugar com a possibilidade de vivenciar uma outra cultura sob a perspectiva de imersão em tradições e costumes.

Para Roraima e sua população, principalmente nos últimos anos, significa muito mais que isso. É a chance de criar alternativas para a geração de renda com pouco ou quase nenhum impacto ambiental e cultural e proporcionar um futuro diferente para milhares de famílias que, até então, não enxergavam essa possibilidade.

O projeto de etnoturismo, coordenado pelo departamento estadual de Turismo e o Sebrae Roraima, envolve a realização de expedições em Terras Indígenas, onde os turistas podem participar do dia a dia dessa cultura ancestral em algumas das várias comunidades indígenas. Para isso, elas precisam ser cadastradas e seguir determinações propostas pela Funai (Fundação nacional dos Povos Indígenas), por meio da Instrução Normativa Nº 003/2015, a qual preconiza a construção de Planos de Visitação Turística que demonstrem franco alinhamento aos princípios da sustentabilidade.

Uma das mais adiantadas nesse processo é a Comunidade Indígena Kauwê, localizada no município de Pacaraima, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, bem na fronteira do Brasil com a Venezuela. O acesso dos turistas é pela vicinal Marechal Rondon, cerca de 5 km da sede de Pacaraima, por uma estrada ainda sem pavimentação.

Na língua Tupi, a palavra indígena Kauwê significa sol. São 56 famílias, em torno de 160 moradores, com predominância da etnia Macuxi.  A consultora em Etnoturismo, Karynna Stael Macuxi, é filha do tuxaua Anísio Pedrosa Lima, o líder da comunidade, se graduou em Turismo e seu trabalho de conclusão de curso tratou justamente do turismo de base comunitária em Kauwê. Ela coordena os trabalhos de turismo na comunidade, “um sonho do tuxaua Anísio”. “Ele sempre mencionava que o turismo geraria renda”, comenta.

Cachoeiras de águas cristalinas são atrativo em Kauwê.

Atualmente a Kauwê é um modelo para outras comunidades que planejam trabalhar o Etnoturismo, Ecoturismo, o turismo de base comunitária. O trabalho já levou Karynna para vários estados, ministrando palestras sobre o caso de sucesso. O caminho não foi fácil. Ela lembra que todo o processo do Projeto Plano de Visitação Turística passou pela aprovação coletiva dos moradores, por meio de assembleia comunitária. “A comunidade em conjunto decidiu aceitar a realizar esse sonho que parecia tão distante”, comenta.

As consultorias do Sebrae ajudaram a agência Kauwê Turismo a crescer. “Tivemos muita evolução através das consultorias e continuamos nesse programa que vem nos auxiliando muitíssimo”, disse.

Também as redes sociais ajudam na propagação das informações. “Criamos nossos roteiros e começamos a divulgar através da nossa página do Instagram, a ganhar destaque, muitas pessoas começaram a visitar”, diz.

O resultado é a geração de renda para várias famílias, que de forma direta e indireta contribuem para a comunidade. “Estamos no período de adaptação, porém está dando muito certo”, comemora.

Hoje comunidade já oferece café colonial e até hospedagem. “Sabemos que o novo assusta as pessoas, e muitos ficaram só observando. Foi um período muito difícil, mas que aos poucos foram se acostumando”, conclui. O investimento dos turistas para o passeio varia. Karynna explica que a comunidade “prioriza a qualidade”. “Recebemos, no máximo, 15 pessoas e o valor vai depender do pacote adquirido pelo grupo”, salienta.

Gleidson da Silva Tabosa é agente indígena de saneamento por profissão, mas foi o escolhido pela Comunidade Boca da Mata para coordenar o projeto de turismo naquela região. A localidade fica às margens da BR-174, chegando no município de Pacaraima, e é conhecida pelas belezas naturais e culturais.

Só nessa comunidade de pouco menos de 800 moradores é possível conhecer as etnias Macuxi, Taurapang, Wapichana, Tucano, Ingaricó, Sapará, Baré e Tariana. O plano de visitação turística foi protocolado há apenas um ano, mas em seguida os grupos de turistas começaram a chegar.

Comunidade Boca da Mata possui vários atrativos naturais.

Um dos maiores atrativos da comunidade é a cachoeira do Ingapirá, que possui cinco quedas. Primeiro foi feito o mapeamento das corredeiras e das trilhas com viabilidade de acesso aos visitantes. “Nunca trabalhamos com turismo. Têm servidores públicos e agricultores na comunidade. Ainda estamos engatinhando”, brinca Gleidson. Prova disso é que a Boca da Mata ainda não fechou parcerias com agências de turismo, mas é o próximo passo, assim como o mapeamento de novos atrativos como cachoeiras e manifestações culturais. “Estamos organizando um festival anual para apresentação da cultura e tradição de cada etnia daqui. Temos a dança do Parichara, as iguarias como damurida e caxiri (bebida fermentada) e outras atrações”, disse.

Por enquanto, os turistas investem R$50 reais para pagamento de taxa por pessoa e mais R$150 para pagamento de guia coletivo.

Conheça um pouco do potencial turístico da Comunidade Kauwê. click aqui

Diversidade de destinos

A visitação turística em terras indígenas de Roraima proporcionou a valorização da cultura com o fortalecimento da identidade ancestral e a singularidade encontrada em cada comunidade trabalhada.

Em todo o estado já são 11. Oito delas no município de Pacaraima: Kauwê, Nova Esperança, Bananal, Boca da Mata, Ingaarumã, Tarau Paru, Perdiz, Novo Destino.

Em Normandia, a comunidade indígena Raposa I foi a primeira em Roraima a ter seu plano de visitação aprovado e a terceira em todo o Brasil, desde 2021. No Uiramutã, o Centro Regional Flexal e em Amajari, a comunidade de Guariba. Em duas delas também é possível aprender sobre a cultura Taurepang.

As comunidades já divulgam roteiros para facilitar a escolha dos passeios.

Artesanato e culinária são atrações naturais

A famosa Damurida e a riqueza do artesanato indígena.

Tudo o que faz parte do cotidiano do morador das comunidades inseridas no projeto pode se tornar um novo atrativo. Artesanato, culinária, as danças e até a medicina tradicional se tornas atrações.

Um destaque é a confecção de Etnojóias, peças artesanais únicas e representativas das etnias Macuxi, Wapichana, Taurepang e Pémon com qualidade, versatilidade e beleza extraordinárias. Cada etnia insere características únicas, que a identificam e classificam sua identidade, como fibras de buriti, pedras e madeira, até as famosas panelas de barro, passando também pela pintura corporal, uma manifestação que chama muito a atenção dos turistas.

A culinária indígena é um espetáculo à parte. São várias as receitas com peixe e o famoso beiju como a famosa Damurida, prato único da culinária indígena roraimense e sem igual em outras etnias do país. Também é possível agendar a participação na produção de farinha durante os passeios.

Cachoeiras, corredeiras naturais e o clima frio da serra

Uma das cachoeiras da Comunidade Kauwê.

Em 2021, o departamento de Turismo de Roraima lançou um inventário estratégico da oferta turística no estado. O documento cataloga os principais atrativos, produtos e serviços do setor, entre centenas de cachoeiras, corredeiras e o clima frio das serras. Até o momento, poucas cachoeiras oferecem boa condição de balneabilidade, acesso e segurança aos visitantes. Grande parte delas está localizada em terras indígenas e só pode ser visitada com a instalação do plano de visitação turística na comunidade para condução por guias locais.

As trilhas ecológicas no Extremo Norte de Roraima são um espetáculo para qualquer visitante e a beleza das paisagens naturais é digna de grandes filmes.

Etnopousada Macuxi

A ideia, conforme o diretor Bruno Di Brito, nasceu da necessidade de oferecer maior retenção dos fluxos turísticos já gerados para as comunidades e, na mesma medida, criar mais condições de trabalho para todos que operam o empreendimento. “Observamos que os visitantes querem cada vez mais estar nas comunidades e viver as experiências que são oferecidas por toda a comunidade, e a hospitalidade é um importante fator de retenção dos fluxos turísticos e de geração de novos oportunidades”, frisou.

Toda a sociedade no entorno do novo negócio poderá trabalhar direta ou indiretamente no empreendimento oferecendo mão-de-obra especializada, produtos, serviços, insumos, manutenção, segurança e toda oferta de suprimentos que pode ser ativada com base na produção agrícola, abundante nas comunidades indígenas. “O empreendimento construído e operado pelas comunidades, promove além de desenvolvimento sustentável, a oportunidade de retenção de jovens nas suas respectivas comunidades por meio da geração de emprego e de novas expectativas”, ponderou o diretor.

Lendas e peculiaridades marcam visitação turística em Terras Indígenas

Vista da trilha na comunidade Kauê.

O turismo em Terras Indígenas é repleto de peculiaridades e pequenos detalhes podem marcar a experiência durante a visitação turística. Um destaque mencionado por quem já participou das expedições é o contato com os anciões de cada comunidade.

Bruno De Brito explica que são eles os “verdadeiros guardiões das histórias milenares” que estão salvas na memória de toda a comunidade e que são repassadas em conversas e no convívio cotidiano para os filhos, netos, bisnetos e toda a sua ascendência na comunidade. “As histórias sobre a criação do mundo, da água, das Montanhas, Macunaíma e seus filhos enchem a memória e a imaginação dos visitantes e revela a todos como essa diversidade é rica importante e necessária para toda a sociedade humana”, enfatizou. Algumas dessas histórias, narra Bruno, contam que Macunaíma transformava em Pedra todos aqueles que desafiam sua autoridade e, por conta disso, durante os passeios é possível se deparar e registrar o que seria essa “transformação em pedra” durante os roteiros que são realizados nas comunidades.

Em nenhuma das comunidades há autorização para caçar, pescar, praticar extrativismo vegetal ou ainda fazer imagens sem permissão, e ele recomenda que o turista tenha como foco exatamente a apreciação da natureza, da cultura ancestral e dos costumes que são passados de geração a geração. “Tudo isso mantém o ecossistema funcionando de maneira sustentável e permite a sobrevivência das comunidades a partir das suas próprias vivências, visões e práticas milenares”, frisou.

Turistas podem esperar “uma experiência incrível”, diz diretora de agência

Vários grupos têm sido guiados pela empresa pioneira em Roraima.

“Os turistas irão, com certeza, ter uma experiência incrível nas comunidades, observando a vivência dos indígenas em sua forma mais pura”. O relato é da diretora de Relacionamento da Roraima Adventure, Lena Matos, que afirma que outras comunidades têm demonstrado interesse em manter contato com as agências de viagens cadastradas para trabalhar com Etnoturismo. 

No início do ano passado, algumas dessas empresas foram convidadas a conhecer destinos em Terras Indígenas, uma espécie de expedição para alinhar as propostas de roteiros previamente aprovados pelas comunidades à sua dinâmica de trabalho.

Na prática, toda roteirização, hospedagem e alimentação, determinação sobre a temporada de visitas, normas de vivência, regras da comunidade e condução turística já foram elaboradas e apresentadas às agências. “As mesmas já constam nos planos de visitação e devem ser seguidas para que seja feito o monitoramento das melhores práticas e que os desafios encontrados possam ser superados e aperfeiçoar as propostas”, esclareceu.

As agências só podem manter roteiros para as comunidades em que já existe esse plano de visitação. “Dessa forma trabalhamos com segurança sem nem um impedimento”, complementou.

Os entraves ainda existem, mas são normais do processo de desenvolvimento na área do turismo, pondera Lena. “Alguns [obstáculos] são burocráticos, outros são alguns órgãos que querem impedir as comunidades de desenvolver”, apontou.

Apoio institucional impulsiona iniciativas empreendedoras no Extremo Norte

Projetos respeitam modelos de etnodesenvolvimento trabalhados pelas comunidades.

Oferta de capacitações engloba consultoria financeira, destino turístico inteligente e novos negócios.

As comunidades indígenas roraimenses nunca tinham apostado no turismo como uma atividade propulsora do desenvolvimento da sua economia, sendo mais voltadas historicamente às atividades de agricultura e pecuária. Porém, com o apoio do Sebrae e do Departamento de Turismo toda essa dinâmica de trabalho, e a percepção de que os

benefícios e as vantagens superavam qualquer preconceito em torno da visitação turística em Terras Indígenas, impulsionou o setor nos últimos tempos, provando que é possível gerar riqueza com segurança, apoio e fortalecimento dos povos originários.

Desde 2019 o Governo do Estado e o Sebrae Roraima vêm traçando estratégias visando a oferta de capacitação para que as comunidades pudessem despertar esse olhar empreendedor.

Bruno Di Brito, diretor estadual de Turismo, reconhece os avanços dos últimos tempos e também os obstáculos que, conforme ele, vêm sendo contornados. “Conseguimos abrir novos roteiros e hoje é possível observar que várias comunidades vêm ampliando seu leque de oportunidades, a exemplo da comunidade do Kauwê, que já conta com mais de cinco roteiros turísticos elaborados e apresentação ao mercado fazendo com que o fluxo de visitantes permaneça por mais tempo na localidade”.

Esse tempo de permanência do turista na comunidade faz parte da engrenagem do negócio. “Quanto mais tempo esse visitante permanecer na localidade, mais ele demandará produtos e serviços gerando nova renda e ampliando os esforços de ganhos executados pela comunidade”, complementa.

Bruno admite que o desenvolvimento dessa modalidade de turismo é lento. “Não é simples, demanda paciência e cautela, até para evitar que seja desencadeado o temido processo de aculturação. Mas é possível transformar essas iniciativas em grande oportunidade de geração de novas afirmações para os povos indígenas”, analisa.

A gestora de Turismo do Sebrae, Katia Veskesky, explica que apenas empreendimentos já formalizados, que garantam de fato um benefício comunitário, recebem atendimento direto da instituição. “As orientações acerca de negociação com as agências de turismo são feitas conforme o plano de visitação realizado pela própria comunidade e aprovado pela FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). O Sebrae entra com suporte quanto às melhores práticas e ferramentas para gestão e procedimentos operacionais de cada negócio”, assinalou a analista técnica, lembrando que as comunidades que ainda não estão formalizadas, mas têm interesse em empreender, podem procurar agências de atendimento do Sebrae em Boa Vista ou ainda as salas do empreendedor, nos municípios do interior, e receber uma primeira orientação dos benefícios e dos trâmites para a formalização de um negócio.

Ela destaca as iniciativas em torno do fortalecimento da cadeia produtiva por meio das consultorias em destinos turísticos inteligentes, marketing e até finanças. “Por serem empreendimentos em fase inicial, pretende-se como próximos passos um acompanhamento do funcionamento destes pequenos negócios, buscando uma gestão inteligente e cada vez mais profissional, visando a estruturação destes e de novos produtos turísticos a longo prazo, o que trará benefícios também para toda cadeia produtiva”, aponta.

Passo a passo para empreender no Etnoturismo

O primeiro passo para as comunidades indígenas é preparar seus Planos de Visitação Turística e, posteriormente, submeter o documento à avaliação da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas.

Em seguida é possível entrar em contato com o Departamento Estadual de Turismo pelo e-mail turismo@secult.rr.gov.br. A partir daí é possível ter acesso a informações, como conhecer as agências que estão devidamente autorizadas a operar com o Etnoturismo em Terras Indígenas.

Também é possível ter acesso a mais notícias sobre a modalidade no site www.turismo.rr.gov.br