Em janeiro, a professora Joyce Carla dos Santos e seu marido Fabrício Carlos de Rezende, trabalhador de construção civil, se deslocaram de Betim, em Minas Gerais, até Brasília, em viagem de carro de dez horas, para conhecer a menina que poderia se tornar a filha do casal.
Durante a viagem, procuraram não falar muito sobre o assunto para não criarem expectativas – até então, tudo o que sabiam sobre Larissa, uma bebê de dez meses que conheceram por uma foto, era que possuía microcefalia em decorrência do vírus zika.
Essa informação perdeu importância quando conheceram Larissa pessoalmente, no abrigo. “Não pensei na dificuldade, senti apenas um amor muito grande, inexplicável”, conta Joyce. Ao se deparar com o quadro de Larissa, que se alimentava por uma sonda no nariz, pouco interagia e não tinha um prognóstico certo, o casal se deu conta de que teria de tomar a decisão mais importante de suas vidas.
Em oito anos de relacionamento, foi a primeira vez que Joyce viu o marido chorar. “Se eu estou sofrendo assim, é porque já a amo. E, se a deixarmos para trás, vamos passar a vida inteira pensando nela”, ele disse.
Segundo Joyce, ao retornarem para Betim com o compromisso de darem uma resposta sobre a adoção, o casal percebeu que a situação se resumia em realizar um ato de amor ou de covardia.
Para a equipe da Vara de Infância e Juventude do Distrito Federal (VIJ-DF), que acompanhou a história de Larissa, a expectativa também era grande. Larissa foi entregue para adoção pela genitora ainda na maternidade e, por conta de sua condição de saúde, passou os três primeiros meses de vida no hospital. De acordo com Walter Gomes de Sousa, supervisor da VIJ-DF, após visitas de técnicos da Vara, foi constatado que ninguém da família biológica tinha condições de recebê-la.
O futuro de Larissa dependia de a Justiça conseguir encontrar uma família para ela o mais rápido possível.
“Ela começou a fazer tratamento no abrigo, mas sabemos que o afeto da família é que potencializa as respostas positivas a todos os estímulos clínicos”, diz Sousa.
Joyce e Fabrício foram o primeiro casal que se dispôs a conhecê-la. Até então, nenhum dos 43,2 mil pretendentes habilitados no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), coordenado pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), havia manifestado interesse no bebê.
Ainda em janeiro, Joyce e Fabrício fizeram pela segunda vez a viagem à Brasília. E já foi para retornarem a Betim com Larissa e os documentos da guarda provisória.
A adoção de crianças com deficiências, como a de Larissa, são mais raras – das 7.271 adoções realizadas, entre 2013 e fevereiro de 2018 pelo CNA, 8% foram de crianças com alguma deficiência ou doença.
Deficiência como barreira
Entre as 8,4 mil crianças disponíveis para adoção no CNA, 79% delas não possuíam doenças ou deficiências no momento do cadastro. Atualmente, 63% dos pretendentes habilitados aceitam adotar crianças com alguma deficiência ou doença. No entanto, algumas enfrentam muito mais resistência: apenas 4% aceitariam adotar uma criança com HIV e somente 3% se habilitaram para receber uma criança com deficiência mental.
No Distrito Federal (DF), 235 crianças foram adotadas entre 2015 e março de 2018, de acordo com dados da Vara de Infância e Juventude (VIJ-DF). Destas, 19 possuíam problemas de saúde. Atualmente no DF há 114 crianças e adolescentes cadastrados para adoção, 20 deles com problemas de saúde. Para Walter Gomes de Sousa, supervisor da VIJ-DF, além da deficiência, outra barreira tem sido a idade.
“As pessoas reclamam muito de exigências feitas pela Justiça, mas algumas exigências feitas pelos pretendentes atentam inclusive contra a dignidade das crianças”, disse Sousa.
De acordo com ele, é comum casais conhecerem crianças dentro do perfil escolhido por eles e, ainda assim, as recusarem. Um exemplo foi um casal que recusou por três vezes crianças dentro do perfil exigido sob alegação de que “ainda não escutaram sininhos tocando ao conhecer as crianças. Há uma visão muito romantizada da adoção”, disse.
A primeira batalha: um mês no hospital
Ao retornarem à Betim com a guarda de Larissa, o quadro de saúde dela complicou e teve que ser internada no hospital imediatamente. Como era véspera de feriado de Carnaval, a cirurgia para colocação da sonda no estômago, em substituição à outra – medida que aumentaria sua qualidade de vida – só poderia ser realizada dali uns dias. Joyce e Fabrício acabaram se revezando durante um mês, no qual passavam a noite em uma cadeira no hospital.
Para Joyce, foram os dias mais angustiantes e exaustivos que já passou. Mas também foi ali no hospital que ela percebeu, pela primeira vez, que a filha reconhecia a sua voz. No pouco tempo em que precisava se ausentar, deixando a menina com um parente, Larissa ficava agitada e só se acalmava quando a mãe retornava.
“Em meio à tanta exaustão, ela sorria para mim e eu tinha a certeza de que tudo valia a pena. Em nenhum momento eu pensei o contrário”.
Mudança de perfil
O casal nunca tinha pensado em adotar uma criança com deficiência e o perfil com o qual se habilitaram no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) foi para uma menina de até dois anos, que poderia ter uma doença tratável. À época, Joyce ouviu que, com esse perfil, esperariam cerca de oito anos. Mas, meses depois da habilitação, quando se depararam com a foto de Larissa, mudaram imediatamente de ideia.
A foto foi publicada em novembro por um grupo de busca ativa – grupos organizados pelas varas de infância de todo o país que reúnem pais habilitados para adoção à espera de seus filhos. Junto à foto, havia a explicação da deficiência de Larissa e a mensagem: “nos ajudem a encontrar uma família para essa princesa”. “Mudamos nosso perfil para poder adotá-la”, disse Joyce, que tem outros dois filhos, em idade de 17 e 20 anos. Fabrício também é pai de outro filho, com 23 anos.
Atualmente o CNA passa por reformulação, por meio de grupo de trabalho instituído pela Corregedoria Nacional de Justiça, e uma das mudanças previstas é a inclusão de fotos, vídeos e outras informações, como cartas ou desenhos feitos pelas crianças, material cujo acesso será restrito aos pretendentes habilitados para adoção. Para Joyce, esse avanço será fundamental. “Foi a foto da Larissa que me tocou, se tivesse fotos no Cadastro Nacional de Adoção, acredito que muita gente ampliaria o seu perfil”.
Conviver com as limitações
Na casa nova, Larissa recebe o carinho não só do casal e seus filhos, mas de vários parentes que adoram carregá-la no colo. Já tem um quartinho, mas, por enquanto, dorme no berço ao lado da cama dos pais. “A microcefalia assusta muito no início, mas nós enxergamos a Larissa muito além da limitação física, nunca nos prendemos a isso”, disse Joyce.
Com apenas um mês de convivência com a nova família, Larissa já fez alguns progressos, está mais comunicativa e risonha. Joyce aprendeu a fazer a alimentação pela sonda e iniciou o tratamento da filha na fisioterapia e fonoaudiologia.
“O zika é uma doença nova, o futuro dela é incerto. O que eu sei é que Larissa é a companheirinha que eu sempre quis, e assim será por toda a vida”.
Fonte: Agência CNJ de Notícias