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O desmonte do ensino médio

Por Gilberto Alvarez (*)

A divulgação dos resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) coloca mais uma vez na berlinda o tema do “desempenho” das e nas nossas escolas, especialmente as públicas, produzindo um diagnóstico desalentador sobre as dinâmicas institucionais de ensino e aprendizagem levadas a efeito nesse país à beira do abismo.
Na fartura de números e gráficos que dão publicidade ao score de cada local torna-se possível vislumbrar sucessos e insucessos em escala macroscópica, ao mesmo tempo em que é quase impossível fazer análises em escala microscópica.
Por exemplo, escolas permeadas por grande vulnerabilidade social podem realizar expressivos acréscimos de qualidade em suas atividades, passando de índices muito baixos para níveis mais densos de proficiência nos saberes escolares, sem alcançar, no entanto, médias mínimas.
Esses movimentos em pequena escala não têm lugar em avaliações de largo espectro. Por exemplo, uma criança que despende 30 minutos para ler um pequeno trecho ou para escrever um pequeno parágrafo e passa a realizar essas tarefas em dez minutos, nessas dinâmicas gerais de avaliação “não cresceu”.
O excesso de más notícias educacionais, especialmente aquelas vinculadas ao ensino médio, poderia pelo menos uma vez abrir espaço para a análise dos detalhes, das singularidades, das especificidades locais para que pudéssemos aprender um pouco com o chão da escola.
Especialmente no ensino médio é gritante a ausência da opinião de professores e profissionais que têm larga experiência na complexa tarefa de ensinar jovens que estão nessa “travessia” para a vida adulta.
Dois problemas se alimentam reciprocamente.
Quando o ensino médio sofre pressões para preparar para o mundo universitário, passa a ser visto não como um fim em si, mas sim como “degrau”, como instância de passagem.
Quando se contrapõe à lógica propedêutica e busca organizar-se, muitas vezes desconecta-se radicalmente do mundo universitário, tornando-se presa fácil das críticas produtivistas que clamam “por resultados”.
Quando se pronunciam a respeito de ambas as faces desse problema, nossas autoridades educacionais invariavelmente falam para a escola e não com a escola, falam aos professores e nunca com os professores.
Segundo o censo de 2017, o ensino médio brasileiro perdeu quase dois milhões de matrículas.
Uma dinâmica iniciada na década de 1950 que, com base nas lutas populares, passou a expandir o número de matrículas começa a declinar antes mesmo de universalizar-se.
Mas os números dessa evasão, assim como os números do desempenho de cada escola, não dão conta de desvelar uma realidade que, vista de perto, surpreenderia muito se os resultados fossem diferentes.
As estruturas estaduais que respondem pelo ensino médio, com poucas exceções, entre as quais não está o Estado de São Paulo, têm enorme dificuldade em compor e fixar o corpo docente.
Escolas muitas vezes dependentes de professores temporários, na maioria das vezes ainda universitários, têm grandes assimetrias na oferta de suas disciplinas.
Professores de física e química são cada vez mais raros e os professores de matemática, que lidam com um dos mais complexos campos de conhecimento que temos, muitas vezes ampliam suas cargas de trabalho respondendo por “tudo o que pareça” ser do domínio das exatas.
As dificuldades estruturais do ensino médio não têm a ver com as licenciaturas e a formação de professores?
O esvaziamento sistemático e contínuo das licenciaturas, verdadeiro projeto de aniquilação, chegou definitivamente aos domínios do ensino médio.
Como é possível discutir desempenho levando apenas em consideração o desempenho em provas de larga escala?
Não é necessário repisar aqui o tema da precariedade material e dos sucateamentos de toda ordem. Tudo o que se deteriora em termos educacionais se desmancha à luz do dia, e nossas ruínas passam a ser “medidas”, nunca analisadas de perto, tampouco de dentro para fora.
É possível afirmar que professores têm um patrimônio pedagógico permanentemente desconsiderado. Muitos estão habilitados a propor estratégias de reorganização, por exemplo, da arte de ensinar português e matemática.
A situação do ensino médio desponta como insustentável, mas o enfretamento da questão passa sempre por silenciar o chão da escola.
A reforma do ensino médio colocada em andamento para solucionar seus problemas estruturais é um impressionante exemplo de desorganização de um modelo mediante a aplicação de algo inaplicável, uma vez que os pressupostos de escolha de itinerários e de conexão entre disciplinas sequer obedece ao mais básico princípio de governança, que é o de verificar quantas e quais escolas estão em condições de levar a reforma a efeito sem destruir-se ou sem simplesmente resignar-se a “oferecer o que consegue”.
Isso se dá porque não somente a dinâmica de avaliação é feita para as escolas e não com as escolas, como também os projetos de reorganização curricular são feitos para ajustar, controlar e até punir professores, nunca para colher desses subsídios que poderiam ser valiosos para contornar pequenos problemas que, no acúmulo, se tornam grandes obstáculos.
Para além dessas cruciais questões, a educação escolar realizada no âmbito do ensino médio prima por não levar em consideração a experiência e a trajetória dos alunos.
Façamos a soma: temos uma estrutura gigantesca que ignora o patrimônio pedagógico dos professores, que ignora a opinião de profissionais da educação que têm experiência com a juventude e que ignora a trajetória das personagens centrais nessa trama. Que estrutura é essa?
Trata-se de uma estrutura feita para apresentar números insuficientes em avaliações de larga escala. Se as avaliações de larga escala procuram um ensino médio que não existe, ganharíamos todos se dialogássemos seriamente com aquele que realmente está aí, com aquele que existe.
Esse que realmente está aí padece dramas estruturais inegáveis, mas esses dramas só se intensificam se ignoramos o potencial de professores e alunos.
Vivemos um momento em que o esvaziamento da docência está chegando ao limite da destruição.
Se deslocarmos as estratégias de governança educacional do professor para os materiais e dos alunos para a verificação de desempenho, os diagnósticos já tomam, no ponto de partida, na construção do pressuposto, que esses atores têm que ouvir para aprender a executar e passa a ser inconcebível que tenham algo a ensinar ou acrescentar.
Os números do SAEB e do já mencionado IDEB são, na realidade, mais do que aferições de desempenho. São também evidências contundentes de que aquilo que causa um problema não pode ser sua solução.
Há déficits consideráveis na proficiência em língua portuguesa e matemática? Resolver esses déficits não passa por fixar professores, trabalhar formação tanto inicial quanto continuada?
As mesmas forças que respondem com um sonoro “não” às questões acima, são as que perguntam por que a escola não ensina com eficiência.
Não nos esqueçamos de que o ensino médio não somente tem sido objeto de avaliações, de reformas, mas também de especulações (no sentido mais monetizado da palavra).
Faz apenas algumas semanas que se cogitou reduzir o ensino médio a 60% de presença obrigatória com 40% de ensino à distância. Aposta no material, aposta no monitor, silenciamento ao professor.
É impressionante a naturalização e aceitação inconteste de que professores de ensino médio sabem pouco, ou só sabem muitos os que atuam nas grandes grifes do ensino particular. Não é verdade. Projetos densos são feitos com e para muitos jovens mesmo quando não se revelam um segmento com amplo horizonte comercial.
Foi o MEC o autor do comentário segundo o qual o ensino médio, tal como está, “não serve para nada”.
As avaliações de larga escala estão, em certo sentido, servindo de base argumentativa e quase como instrumento de comprovação de que o país não somente tem problemas educacionais, como também “não tem professores” aptos.
Tem sim.
Temos profissionais dentro e fora das salas de aula que conhecem o chão da escola com grande precisão e maestria.
É ousado reconhecer que têm conteúdos, mas não têm condições de utilizá-los? É ousado, sim, mas necessário e urgente.

(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.