O Brasil atravessa um momento que seguramente será muito estudado nos próximos anos, considerando a extraordinária velocidade com a qual conquistas expressivas da sociedade como um todo têm sido esvaziadas.
Desde a retomada da democratização, na segunda metade da década de 1980, que culminou com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, uma das questões mais estratégicas para o enfrentamento das muitas assimetrias sociais de nosso país foi a difícil tarefa de fazer com que Estado e governo não se confundissem.
O Exame Nacional de Ensino Médio, ENEM, ganhou vigor democratizante à medida que se tornou um compromisso de Estado com diversos itens da pauta de enfrentamento das desigualdades de oportunidades que caracteriza, em diversos sentidos, a passagem da juventude para a vida adulta, o que inevitavelmente diz respeito aos temas ensino médio, ensino superior e horizontes laborais.
Democracia não é fim, é meio, é modo de fazer, de caminhar, para que os pontos de chegada não consolidem distâncias, mas, ao contrário, demonstrem claramente que os processos seletivos não são naturais e inquestionáveis, mas sim que são grandes barreiras quando, e somente quando, as oportunidades são poucas, em alguns casos, pouquíssimas.
Deve-se recuperar o histórico recente do processo pelo qual as instituições de ensino superior, especialmente as públicas e, dentre essas, destacadamente as universidades federais, foram aderindo ao ENEM como instrumento de organização do acesso às vagas disponíveis.
As instituições gradativamente perceberam que o exame permitia um diálogo interdisciplinar com a experiência do (a) candidato (a). Perceberam que a seletividade dos vestibulares resultava muito mais do aprimoramento de técnicas (não acessíveis a todos) para demonstrar conhecimentos concentrados em áreas de desempenho do que trânsito analítico por saberes os mais diversos.
Ou seja, continuamente as diferentes gestões do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) compreenderam que o ENEM não pertencia a qualquer base partidária e governamental e, por isso, a tarefa de permanentemente aperfeiçoá-lo caberia, cumulativamente, a todos, provendo o Estado com um instrumento diversificado, criativo e promotor de debates e reflexões de fundo, o que é muito compatível com a situação daqueles (as) que estão caminhando para o ensino superior.
Ocorre que, neste momento, há indícios de que o ENEM está sendo transformado em vestibular nacional. Será grande a perda se isso se confirmar.
Mais do que indícios, já está posta a decisão de dividi-lo em duas fases, geral e específica, com fragmentação de conteúdos conforme o curso de graduação pretendido.
O “novo ENEM” deve entrar em vigor em 2021, intervalo de tempo considerado suficiente para adaptar as provas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que, no caso do ensino médio, significa dar forma ao exame de um percurso dividido em componente comum (60%) e em itinerários escolhidos (40%). Esses itinerários são linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional.
A sociedade tem direito à dúvida. A primeira delas é se o ensino médio atualmente está em processo de reforma ou de simples desmanche, desmanche esse em benefício de um modelo já deixado para trás.
Por exemplo, é crescente a necessidade de perguntar se os itinerários estarão equilibrada e democraticamente disponíveis para todos ou teremos escolas especializadas em áreas mais concorridas e escolas com recursos “menos dispendiosos” e, por isso, focadas em áreas “menos nobres”?
Dependendo da resposta estará definida a volta às áreas de desempenho como base para um grande vestibular nacional.
Teremos escolas com componente comum e somente o itinerário profissionalizante à disposição?
Já se ensaia a resposta de que a oferta equilibrada de escolas com os mesmos itinerários a todos é economicamente insustentável, especialmente porque o ensino médio constitucionalmente é responsabilidade dos Estados, não da União.
Até as escolas privadas permanecem em espantado silêncio, aguardando prudentemente antes de agir, mas também já pressentem que o ENEM equivalerá à estrutura cindida das áreas de desempenho, base histórica dos grandes vestibulares.
É fundamental defender o ENEM para que não deixe de ser o instrumento democratizante que concretamente se tornou e passe a ser um vestibular nacional com primeira fase genérica e segunda fase específica, podendo ser a especificidade desse momento a institucionalização de um retrocesso.
É claro que um exame relacionado ao ensino médio sempre será estruturalmente dependente dos debates a respeito da escola que temos e das projeções a respeito da escola que queremos.
Alguns debatedores chegaram a afirmar que quanto melhor o ENEM ficava mais dialogava com um ensino médio a ser construído, não o realmente existente.
Mas, independentemente dos passos e descompassos, nunca se cogitou que uma parte pudesse ser reformada de modo a empobrecer a outra.
Um ENEM reduzido a vestibular é, concretamente, espelho de um ensino médio que voltou às ruínas de um passado recente.
(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.