Os procedimentos licitatórios possuem sua base normativa na própria Constituição da República de 1988 e, atualmente, carregam consigo o ideal de aperfeiçoamento na concretização dos objetivos almejados pela Administração Pública em suas compras. Apesar de termos uma Lei Geral de Licitações consolidada e outros diplomas normativos esparsos, não é raro, no desenrolar das fases dos certames licitatórios, o surgimento de celeumas interpretativas.
Emerge-se, na realidade vivenciada pelos agentes públicos e licitantes, a necessidade de treinamentos contínuos acerca da legislação, da doutrina e dos precedentes das Cortes de Contas, sendo, imperativo, o investimento em assessoramento especializado. Aliás, “quem compra mal, compra mais de uma vez e, pior, com dinheiro público”.
Nesse contexto, a licitação possui também uma função regulatória, que, nos termos da legislação aplicada à espécie, garante um regime jurídico diferenciado a determinados atores econômicos, fomentando-se um tratamento peculiar– isonômico em seu aspecto material -, v.g., às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – EPPs e MEs.
Uma das principais prerrogativas concedidas às EPPs e MEs éo famigerado empate ficto, que consiste na possibilidade de tais empresas apresentarem, num intervalo percentual, “proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado” (art. 45 da LC n. 123/2006).
Aparentemente, o desdobramento da leitura gramatical do empate ficto não transparece maiores complicativos, contudo, em determinados pregões é possível vislumbrar, especialmente em razão da inversão de fases (primeiro se analisa a proposta e posteriormente os documentos de habilitação), a ocorrência de inabilitações ou desclassificações dos licitantes em melhor classificação/colocação.
Daí passa-se a surgir a seguinte dúvida razoável: o parâmetro de verificação do empate ficto será a proposta inicialmente “vencedora” do certame, mesmo sendo ela desclassificada/inabilitada ou a proposta declarada “vencedora” após a fase de habilitação?
Para melhor compreensão, imaginemos uma situação em que ocorra, no pregão, a desclassificação ou inabilitação da 1ª colocada “vencedora”, e, posteriormente, da 2ª colocada quando chamada para apresentar os documentos de habilitação, chegando-se, na ordem de classificação, à 3ª colocada, “nova vencedora” e devidamente habilitada, que não se enquadra na qualificação de ME ou EPP. No exemplo, suponhamos que a 4ª colocada seja ME/EPP. Então, qual o parâmetro para verificação do empate ficto, a proposta daprimeira colocada originariamente, ainda que inabilitada ou, no nosso exemplo, a proposta da 3ª colocada, atual “vencedora” e devidamente habilitada? O que realmente significa “vencedor do certame”?
Pois bem, cumpre registrar que a Administração Pública está adstrita aos contornos da lei, por imposição constitucional, a qual consagrou o princípio da legalidade. Assim prescreve o art. 37 da Constituição da República de 1988:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
Acerca do princípio da legalidade, Pedro Lenza preleciona (2015, p. 1520), que “a Administração deve atuar segundo a lei e nunca contra ou além da lei. […] Confinar a atuação governamental aos parâmetros da lei, editada pelos representantes do povo, é trazer segurança e estabilidade, evitando, ainda, qualquer tipo de favoritismo por parte do administrador“.
Ademais, o processo licitatório e a estrita observância às suas regras têm por fim assegurar a impessoalidade, necessária para efetivação do interesse público em detrimento do particular, mediante a inibição de favoritismos e de perseguições, e propiciar a maior vantagem à Administração Pública.
A par desses direcionamentos, é importante destacar que o tratamento favorecido às empresas de pequeno porte emerge diretamente da CRFB/88, in verbis:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[…]
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Destacou-se)
À luz do mandamento constitucional, o legislador ordinário editou a LC nº 123/2006, que trouxe em seu bojo diversos dispositivos garantidores ao tratamento favorecido às empresas de pequeno porte, sobretudo quando da participação em procedimentos licitatórios.
Nessa linha, traz-se à colação a inteligência dos arts. 44 e 45 da LC nº 123/2006, os quais garantem às empresas de pequeno porte o chamando “empate ficto”, senão vejamos:
Art. 44. Nas licitações será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte.
§ 2º Na modalidade de pregão, o intervalo percentual estabelecido no § 1º deste artigo será de até 5% (cinco por cento) superior ao melhor preço.
Art. 45. Para efeito do disposto no art. 44 desta Lei Complementar, ocorrendo o empate, proceder-se-á da seguinte forma:
I – a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado;
Da leitura do dispositivo legal, percebe-se que o legislador ordinário pretendeu, seguindo os ditames da Constituição Federal de 1988 (art. 170, IX), conferir um tratamento “favorecido”, deixando firme que a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame.
Como dito, a questão é saber se as propostas mais bem classificadas, após “desclassificação” ou “inabilitação” do licitante, são capazes de servir como parâmetro para verificação do empate ficto.
Em situação congênere, ensina-nos o Prof. Ronny Charles:
Diante da situação em que o primeiro classificado não é ME/EPP e seu valor reduzido impede o exercício do direito de desempate ficto, pela existência de uma diferença superior ao percentual de 5% estabelecido pela LC 123/2006, sua desclassificação ou a não assinatura do contrato permitem novo cálculo do percentual para aplicação do desempate ficto?
Exemplificamos: num determinado certame, entre as três melhores classificadas, estavam duas empresas grandes( ‘empresa A’ e ‘empresa 8’) e uma EPP (empresa C), ficando esta última na terceira colocação. Os valores dos lances finais das três empresas foram, respectivamente: R$ 100.000,00, R$ 140.000,00 e R$ 142.000,00.
Obviamente que, ao final dos lances, a EPP não teria condições de exercer o direito de desempate ficto em relação à primeira colocada, pela diferença superior ao percentual de 5%; contudo, tendo a ‘empresa A’ se furtado à assinatura do contrato ou sido desclassificada, a diferença (inferior a 5%) entre os lances finais da ‘empresa B’ e a ‘empresa C’ admitem o exercício, pela EPP, do direito ao desempate ficto, em relação à ‘empresa B’?
Entendemos que sim. Uma vez desclassificada a ‘empresa A na sequência das propostas se identificará uma situação de empate ficto, conforme estabelecido pela LC 123/2006.
Consoante se vislumbra do nosso exemplo, a empresa classificada na 1ª colocação, apesar de ter apresentado lance mais baixo que as demais licitantes, não foi considerada vencedora do certame, em razão de ter sido “inabilitada” ou “desclassificada”. Logo, seu lance não poderia servir de parâmetro ao empate ficto na forma da lei – assim como as propostas subsequentes que também foram desclassificadas –, por não ser considerado o vencedor do certame.
Ao se fazer uma leitura da Lei nº 10.520/2002, resta evidente que a “proposta vencedora” ou “vencedor do certame” só será alcançado após a análise de todas as fases e subfases da licitação, veja:
Art. 4º A fase externa do pregão será iniciada com a convocação dos interessados e observará as seguintes regras:
[…]
XI – examinada a proposta classificada em primeiro lugar, quanto ao objeto e valor, caberá ao pregoeiro decidir motivadamente a respeito da sua aceitabilidade;
[…]
XV – verificado o atendimento das exigências fixadas no edital, o licitante será declarado vencedor;
XVI – se a oferta não for aceitável ou se o licitante desatender às exigências habilitatórias, o pregoeiro examinará as ofertas subseqüentes e a qualificação dos licitantes, na ordem de classificação, e assim sucessivamente, até a apuração de uma que atenda ao edital, sendo o respectivo licitante declarado vencedor; (Destacou-se)
Dessa forma, entender no sentido de que a proposta inicialmente classificada em primeiro lugar, mesmo que posteriormente desclassificada ou inabilitada, possa conduzir e servir como parâmetro para o certame, de mseria adotar linha interpretativa contrária aos mandamentos de otimização da CRFB/88 e das normas infraconstitucionais, porquanto sempre que empresas conquistassem o primeiro lugar em pregões eletrônicos mediante a apresentação de preços impraticáveis e depois desistissem do certame (não apresentando a documentação, por exemplo), a preferência às micro e pequenas empresas restaria inviabilizada.
Colaciona-se, por oportuno e demonstrando que celeumas acerca da matéria existem, precedente do Tribunal de Justiça do Paraná – TJPR, o qual entendemos ser a interpretação correta do ordenamento jurídico vigente:
[…]A) Ocorrendo o empate ficto nos termos dos arts. 44 e 45 da LC 123/06 (proposta apresentada até 5% superior à melhor oferta), é direito subjetivo da microempresa apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora e assim, ter adjudicado em seu favor o objeto licitado. B) A verificação da ocorrência de empate ficto deve considerar as propostas “regulares”, isto é, de licitantes que podem, efetivamente, ter o objeto do contrato adjudicado para si, conhecíveis, portanto, somente após o julgamento dos recursos eventualmente interpostos contra seus credenciamentos ou habilitações. c) A exclusão definitiva de 7 das 9 licitantes por força de acolhimento de recurso implica na desconsideração, para quaisquer fins, dos lances por elas ofertados, não havendo que se falar em preclusão da fase de lances verbais para superação de empate ficto só porque, antes da exclusão dos “irregulares”, não se configurara tal hipótese.2) AGRAVO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. (TJPR – 5ª C.Cível – AI – 1210982-5 – Cerro Azul – Rel.: Leonel Cunha – Unânime – – J. 21.10.2014)
No mesmo sentido segue o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no AGTR Nº 110321/PE (0015196-82.2010.4.05.0000), in verbis:
[…]9. A decisão agravada partiu da premissa de que, mesmo desclassificada a empresa, aquela melhor proposta deveria ser adotada como parâmetro para efeito de identificação de eventual ocorrência de empate ficto futuro, valendo-se do raciocínio, segundo o qual, ao se distanciar cada vez mais da melhor oferta, mesmo que eliminada do certame, o pregoeiro estaria violando os princípios da igualdade e da melhor proposta para a Administração.
10. É notável a preocupação e a prudência da magistrada de primeiro grau em defesa de princípios elementares do processo licitatório, porém, com todo respeito, o que se deve ter em foco é a escolha da melhor proposta válida, pois o preço apenas constitui um componente desta.
11. Portanto, os quatro milhões oferecidos, embora tenham refletido o melhor preço provisório, a empresa proponente foi desclassificada, e, nessa condição, aquele valor não pode ser computado para nenhum efeito, nem mesmo para fins de parâmetro da ocorrência de empate ficto.
12. Provimento do agravo de instrumento.
Vê-se, portanto, que a interpretação adotada pela doutrina especializada e pelos precedentes dos Tribunais Pátrios, os quais nos filiamos, converge ao entendimento de tomar como parâmetro de aferição da ocorrência ou não de empate ficto garantido às MEs e EPPs, a proposta que for declarada vencedora – esta caracterizada somente após a fase de lances e habilitação ou após o interregno recursal -, e não àquela inicial e provisoriamente mais bem classificada.
Em arremate, com sustentáculo no entendimento da Corte Paranaense, podemos tranquilamente sintetizar a ratio da interpretação no sentido de que a verificação da ocorrência de empate ficto deve considerar as propostas “regulares”, isto é, de licitantes que podem, efetivamente, ter o objeto do contrato adjudicado para si, conhecíveis, portanto, somente após o julgamento dos recursos eventualmente interpostos contra seus credenciamentos ou habilitações.
Herick Feijó Mendes |
Advogado Analista Jurídico – Servidor Público Efetivo Especialista em Direito Público
|
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>.
BRASIL. Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.
BRASIL. Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002.
CHARLES, Ronny. Leis de licitações públicas comentadas. 5a ed. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 796.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
TRF 5. AGTR Nº 110321/PE 0015196-82.2010.4.05.0000. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL EMILIANO ZAPATA LEITãO.
TJ/PR. AGRAVO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. (TJPR – 5ª C.Cível – AI – 1210982-5 – Cerro Azul – Rel.: Leonel Cunha – Unânime – – DJ. 21.10.2014)