Devair Antônio Fiorotti
Diz um canto indígena:
imantî pî pona’
maroko watarikuma
[lá na subida da cachoeira os peixes se enfeitam[1]]
Esse canto me foi primeiro mostrado escrito e depois cantado por Terêncio Luiz Silva, Manaaka, índio macuxi, que vive a dois dias a pé da cidade de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, na comunidade Ubaru. A pé, pois não há estradas para lá. Ele foi cantado por seu Terêncio e Dona Zenita, Yauyo, sua esposa, em um registro que deve estar disponível ainda em 2016, pelo Museu do Índio, do Rio de Janeiro.
O caminho adotado pelos estudos de literatura brasileira tem sido de ignorar tais produções artísticas – qualquer revisão da grade curricular dos cursos universitários de Letras ou de compêndios de historiografia literária brasileira aponta isso com clareza. São exceções trabalhos distantes dos cursos de Letras, como os de Pedro Cesarino, Rosângela de Tugny, Bruna Franchetto, como os da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Independente do descaso, essas artes verbais continuam a ser produzidas por mais de uma centena de etnias indígenas em nosso País.
Esse canto é um parixara, um estilo de dança e música comum entre os indígenas do chamado circum-Roraima, que engloba etnias como Macuxi, Taurepang, Ingaricó, Wapixana, em região pertencente a três países: Brasil, Venezuela e República Cooperativista da Guyana Inglesa. Esse canto, pelo menos essa é a conclusão a que tenho chegado, pertence a um elaborado sistema artístico, pois o parixara em sua origem envolve canto, letra, dança, instrumentos como chocalhos diversos, pintura corporal, figurinos específicos.
Há poeticidade no canto, se comparado com construções imagéticas contemporâneas, como a de Manoel de Barros e, nesse caso, a tradução é bem literal; mas, principalmente, é poética, pois pertence às artes verbais culturais de seu Terêncio, em uma estrutura artística própria. Temos peixes se enfeitando para uma festa, me disse ele. Esse tipo de texto é um produto cultural que, em muitos casos, ultrapassa gerações, ao mesmo tempo em que é contemporâneo nosso, é atualizado, cantado, pertence à memória coletiva e atual de seu Terêncio, de seus povos: os Macuxi e os Taurepang, aos quais seu Terêncio está intimamente ligado por questões de parentesco e vivência.
Assim como textos escritos são reelaborados e reescritos na cultura nossa de todos os dias, textos indígenas como o poema acima são escritos, lembrados, reelaborados em centenas de comunidades indígenas (por exemplo, para quem pensa que esses textos são somente criações antigas, para não dizer primitivas, em sentido pejorativo, não esqueço quando seu Terêncio disse que modificava algumas letras dos cantos, algumas terminações, pois assim, nas palavras dele, ficava melhor, mais bonito).
Tenho visto muitos trabalhos pensando a periferia e a contemporaneidade.
Não tenho dúvidas da necessidade de expandirmos o conceito de periferia para além do texto escrito, publicado, como em geral temos visto. As poéticas ameríndias,
como a do poema acima, se estruturam em grande parte ainda sobre outro suporte: a oralidade. Poéticas orais que têm sofrido grandes perdas com a chegada das tecnologias como televisão, internet nas comunidades, bem como das religiões, principalmente as fundamentalistas. As mudanças são imediatas, o rompimento entre narrar à noite histórias e a substituição por se sentar diante de uma televisão, é quase inevitável. Digo perdas, conhecendo conceitos como transculturação, pois o que tenho visto, no caso dos indígenas macuxi, com quem convivo mais, é uma substituição. Cantos como parixaras só são conhecidos efetivamente por gerações mais antigas, salvo raras exceções, sendo que o mesmo tem ocorrido com a própria língua macuxi, hoje falada por poucos jovens na região do Alto São Marcos, Pacaraima, Brasil, por exemplo.
Pensar a periferia hoje, a meu ver, é também se voltar para as poéticas orais ameríndias. Voltar-se com vigor, pois se faz necessário conhecer e registrar essas poéticas, incluindo-as, ao mesmo tempo, como objeto de estudo além da Antropologia, da Musicologia, mas nos cursos de Letras. Poéticas, como as presentes nas letras dos cantos parixara, pertencem não a uma periferia como concebemos a literatura brasileira em relação à canônica universal, mas ela em si é periferia (brasileira) da periferia (de Roraima) da periferia (oral indígena).
Algo similar, penso eu, deve acontecer em relação a conceitos como contemporâneo. Tenho dúvidas se esse conceito ajuda a pensarmos as vivências ameríndias, a existência de suas artes verbais, por exemplo. Conceituações como a de Giorgio Agamben me parecem excludentes, apontando para um modelo de indivíduo do qual muitos não fazem parte. Os indivíduos ameríndios são, afinal, contemporâneos?
Não consigo conceber as artes verbais ameríndias distantes das academias, por mais que, muitas vezes por questões ideológicas, elas estejam. Me nego a isso, pois há nelas uma abertura para se pensar a diversidade cultural brasileira, principalmente uma abertura para se entender o humano além de critérios estritamente ocidentais, como em geral acontece. Entre a literatura brasileira contemporânea escrita, livresca, digital e as artes verbais ameríndias, fico com as duas. Penso que não podemos aceitar menos, como na beleza do poema abaixo, um marapá cantado por seu Terêncio:
apakakî wîi wîri wîri
apakakî wîi wîri wîri
awukuruî ikurumapa
apaiwarîrî ikurumapa
apakakî wîi wîri wîri
apakakî wîi wîri wîri
apakakî wîi wîri wîri
awukuruî ikurumapa
apakakî wîi wîri wîri
apakakî wîi wîri wîri
apakakî wîi wîri wîri
apakakî wîi wîri wîri
uwai riru itun etapa
wama-wamari itun etapa
apakakî wîi wîriwîri
apakakî wîi wîriwîri
apakakî wîi wîri wîri
apakakî wîi wîri wîri
awukuruî ikurumapa
apaiwarîrî ikurumapa
apakakî wîi wîri wîri
apakakî wîi wîri wîri
uwai riru itun etapa
wama-wamari itun etapa
apakakî wîi wîri wîri
apakakî wîi wîri wîri
ruwe-ruwerî itun etapa
apakakî wîi wîri wîri
apakakî wîi wîri wîri
apakakî wîi wîri wîri
awukuruî ikurumapa
apaiwarîrî ikurumapa
[acorda mulher para coar a bebida coar o apaiuá[2]
acorda mulher mulher acorda
mulher pra coar a bebida
escuta o som do meu instrumento do wana wana[3]
acorda mulher
para coar a bebida coar o apaiuá
acorda mulher mulher acorda
mulher pra coar a bebida
escuta o som do meu instrumento do ruwe ruwe[4]
acorda mulher
para coar a bebida o apaiuá
acorda mulher mulher acorda
mulher pra coar o apaiuá]
[1] Essa tradução pertence a mim e a ele. Dados do projeto Panton pia’, de Devair Antônio Fiorotti. [2] Bebida fermentada de beiju que diferencia-se do pajuaru, pois é fermentada no alto, sobre um jirau, enquanto o pajuaru seria fermentado sobre a terra. A feitura das bebidas era de exclusividade das mulheres, inclusive meninas púberes eram “tratadas” na boca para fazerem a bebida, já que a saliva contribuía para o processo de fermentação. [3] Um tipo de flauta, pouco conhecido entre os indígenas. [4] Flauta pequena feita de taboca.